Ministro da Fazenda está embalando sua tentativa de realizar o ajuste fiscal preponderantemente pelo lado da receita no discurso bastante hábil de fazer ricos e poderosos espertos contribuírem como deveriam para a sociedade. Mas há, naturalmente, riscos nessa estratégia.

Por Fernando Dantas Jornal Estadão

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, está encontrando um discurso hábil para embasar o grande desafio a que se propôs na sua pasta, que é o de realizar um ajuste fiscal estrutural em grande parte pelo lado da receita.

Basicamente, Haddad se coloca como o defensor da justiça tributária. E qualquer política pública que seja percebida pelo eleitorado como contrária às notórias injustiças da sociedade brasileira tem potencial de se tornar popular. E isso, naturalmente, ajuda a tramitação no Congresso.

Dessa forma, em vez de tentativa de arrancar mais impostos de uma população com o fardo de uma das mais altas cargas tributárias do mundo emergente, o governo, na verdade, segundo o discurso da Fazenda, está correndo atrás de grupos poderosos que astuciosamente se safam de contribuir como devem com a sociedade.

De sites de apostas esportivas a “400 a 500 empresas com superlucros” com custeio subvencionado, o governo está passando um pente fino em todo tipo de receita potencial que não esteja sendo paga por alguém ou por alguma empresa ou entidade, sem argumentos satisfatórios para defender o privilégio.

Essa estratégia, naturalmente, não inclui os dois grandes campeões dos subsídios no Brasil, o regime Simples e a Zona Franca de Manaus, que representam cerca de 2% do PIB dos 4,6% do PIB de isenções tributárias em vigor no País. Tanto no caso da Zona Franca quanto do Simples, existem grupos de pressão poderosos e articuladíssimos, com discurso pronto para caracterizar a primeira como uma questão de justiça regional e o segundo como de justiça para pequenos e médios empresários.

Por mais que economistas e tecnocratas apontem as distorções e a baixa eficácia tanto da Zona Franca quanto do Simples em promover o objetivo mais nobre do desenvolvimento socioeconômico, essa é uma guerra de narrativas que o governo sabe que não consegue vencer.

Mas a aposta de Haddad parece ser a de que, na imensa e intrincada teia do sistema de isenções tributárias no Brasil, haja muitos “espertinhos” sem um discurso minimamente aceitável de defesa dos privilégios.

E, desse universo de receitas potenciais, seria possível arrancar, em uma série de nacos – alguns poucos de dimensão significativa; outros modestos, mas numerosos – a maior parte dos R$ 100-150 bilhões que faltam em tese para fechar a conta da trajetória de resultados primários prometida pelo governo.

Afinal, mesmo excluindo Zona Franca e o Simples, são 2,6% do PIB, mais que R$ 250 bilhões, como território potencial de “caça” para Haddad.

E, de fato, quando se lê o Demonstrativo dos Gastos [isenções] Tributários do PLOA 2023, é um espanto. A lista interminável de setores incentivados e subsidiados inclui de portos a cinemas, de automóveis a eventos, de semicondutores a leasing de aeronaves, de informática e automação a esportes, e por aí vai.

Na lista aparecem ainda itens como petroquímica, indústria de defesa, atividade audiovisual, táxis, entidades filantrópicas, livros/jornais/periódicos, futebol, aerogeradores, defensivos agropecuários, água mineral, biodiesel, embarcações, produtos químicos, entre muitos outros.

Evidentemente, esses beneficiários também têm seus discursos de defesa, mas o governo parece empenhado em desencavar situações em que existam incongruências ou artifícios injustificáveis quando se analisam conjuntamente o potencial contribuinte, a isenção de que desfruta e o alegado porquê desse privilégio.

Assim, há situações simples, como a dos sites de apostas esportivas que não contribuem com nada, assim como os apostadores que ganham prêmios. E as mais complexas, como o abatimento, por empresas, do crédito de incentivos fiscais estaduais da base de cálculo de impostos federais, no caso de gastos de custeio – as tais 400 a 500 empresas com “superlucros”.

A aposta de Haddad na bandeira da justiça tributária é politicamente inteligente, mas não é, claro, livre de riscos e dificuldades.

Um desafio é combinar o ativismo tributário da Fazenda relacionado à busca das receitas para o resultado primário com a reforma tributária que se promete neutra. É muita ação num mesmo palco, o tributário, que demanda articulação fina para evitar trombadas.

Outro risco, naturalmente, é que a teia de isenções tributárias se revele um vespeiro, à medida que os incontáveis lobbies dos que perderão benefícios entrem em campo para lutar. Há o risco adicional de energizar grupos de pressão que defendem privilégios tributários às vésperas da grande reforma que tem como objetivo passar a limpo o sistema como um todo.

Finalmente, para que o tema da justiça tributária sensibilize a sociedade e o eleitorado, seria preferível que o governo todo estivesse alinhado como o ideal de justiça de forma ampla, geral e irrestrita, mas Lula vem se mostrando algo sectário neste início de mandato em alguns temas muito sensíveis nessa seara.

Artigo de hoje da jornalista Malu Gaspar no jornal O Globo, por exemplo, mostra como iniciativas do governo ou de seus aliados estão indo muito além de corrigir os desvios da operação Lava-Jato, parecendo querer, na verdade, retroceder nos avanços da luta anticorrupção da última década.

E o mesmo governo que, segundo reportagem de Vera Rosa, do Estadão, articula PEC que obriga militares a se aposentarem para disputar eleições ou assumir ministérios, busca reintroduzir políticos na ativa na direção de empresas públicas, o que foi vedado pela Lei das Estatais (o assunto é abordado nesta coluna de Raquel Landim).

Essa postura dúbia em questões éticas, com dois pesos e duas medidas, pode fragilizar a cruzada de Haddad pela justiça tributária, que, em si mesma, é uma boa ideia.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fojdantas@gmail.com)

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