Por
Deltan Dallagnol – Gazeta do Povo


| Foto: Agência Brasil

Os acontecimentos desta semana me lembraram de uma história bíblica. Os exércitos dos judeus e dos filisteus estavam posicionados para a guerra no alto de duas colinas, tendo um vale entre eles. O medo cortava o ar, pois em poucos dias muitos morreriam em batalha.

Golias, um guerreiro profissional filisteu, chamava atenção pelo seu tamanho. O gigante usava uma pesada armadura e parecia invencível. Ele era ainda parte importante de uma estratégia de guerra psicológica que antecedia a luta.

Todo dia, por quarenta dias, Golias se posicionou entre os exércitos e fez um desafio: um duelo entre ele e o melhor guerreiro de Israel, em substituição à batalha entre os exércitos. O povo do perdedor se tornaria escravo da nação adversária.

Do lado judeu, o silêncio e o medo imperavam, até que Davi foi visitar seu irmão no acampamento militar. Davi era apenas um pastor de ovelhas que tinha confiança em Deus. Não usava armadura nem armas requintadas, mas tinha uma funda – uma espécie de atiradeira para lançar pedras.

Quando Davi ouviu o desafio de Golias, ele não hesitou em se oferecer para lutar pela liberdade daqueles que amava, mesmo sabendo que estava em grande desvantagem. Sem se deixar intimidar, lutou para impedir que seu povo fosse silenciado e escravizado pelos filisteus.

Com a funda e uma pedra, Davi matou o gigante. Ele não apenas derrotou o invencível, mas mostrou ao povo que a dedicação, a coragem e a fé são capazes de vencer até mesmo os maiores desafios.

E por que lembrei dessa história? Porque há poucos dias, o governo Lula acreditava que a aprovação do Projeto de Lei da Censura era certa, afinal, tinha a máquina e o apoio dos outros dois Poderes. Juntos, pareciam um Golias invencível, poderoso e equipado. “Vai passar” – é a frase que ecoava nos corredores do Congresso Nacional.

Do outro lado, a sociedade não tinha o poder da liberação de recursos e cargos para influenciar votos, o poder de pautar o que seria votado nem o poder ou apoio da imprensa. Embora sem esses equipamentos, tinha a dedicação, a coragem e a fé para lutar por sua liberdade, enfrentando o gigante.

Há poucos dias, o governo Lula acreditava que a aprovação do Projeto de Lei da Censura era certa, afinal, tinha a máquina e o apoio dos outros dois Poderes. Juntos, pareciam um Golias invencível, poderoso e equipado

De fato, milhões de brasileiros se manifestaram nas redes, ligaram para gabinetes, pressionaram deputados e foram a aeroportos e ao Congresso Nacional pedir para que sua voz não fosse calada. Muitos parlamentares chegaram a desabilitar comentários em suas redes sociais ou mencionaram em conversas que a pressão social se tornou invencível.

O povo lutou arduamente, o impossível aconteceu e o gigante caiu. Na terça-feira, o Governo foi derrotado e não conseguiu aprovar o projeto da Censura. A sociedade acordou e decidiu que não seria amordaçada. E na beleza que apenas as democracias são capazes de alcançar, ecoou a voz do povo na Casa do Povo, a Câmara dos Deputados.

O que aconteceu foi um milagre: o sistema perdeu uma batalha. Para evitar uma estrondosa derrota, o governo bateu em retirada. Você, você que está lendo este artigo neste momento, você é responsável pela vitória da nossa liberdade. Gostaria que você tivesse ideia do quão grande é isso, de quão forte a sua voz ecoa e de como ela é poderosa.

Muitos parlamentares chegaram a desabilitar comentários em suas redes sociais ou mencionaram em conversas que a pressão social se tornou invencível

Essa vitória é sua. Foi a sua dedicação, a sua coragem e a sua fé que protegeram os brasileiros e o direito de expressar sua convicção religiosa, de criticar autoridades e de divergir. Sem isso, Golias teria prevalecido e o povo brasileiro teria sua voz escravizada pelo governo. No final das contas, prevaleceu o poder dos eleitores.

E não me entendam mal: a questão não é se deve ou não haver a regulação do conteúdo ilícito da internet. Ela pode ser realizada e é bom que seja, mas seguindo as melhores experiências democráticas do mundo, as quais preservam as liberdades. É importante expressar o óbvio: sem liberdade, não há democracia.

Tampouco estou demonizando os defensores do projeto da censura: há pessoas bem-intencionadas que o defenderam – vários jamais leram seu texto ou compreenderam suas consequências. Não cabe generalizar, contudo, vale a advertência do ditado: de boas intenções o inferno está cheio.

De todo modo, é certo que não pode ocorrer, como aconteceu, o avanço de uma proposta que entrega ao governo superpoderes para calar a sociedade e recompensa financeiramente a propagação de fake news pela mídia marrom, ao mesmo tempo em que impede que seu conteúdo falso seja derrubado.

O que não pode ocorrer é a importação de uma caricatura deformada da legislação europeia, sem as salvaguardas das liberdades que lá existem, e o atropelo injustificável do debate da proposta brasileira, suprimindo a possibilidade de a sociedade discutir e aperfeiçoar as regras que impactam a sua liberdade.

Essa vitória é sua. Foi a sua dedicação, a sua coragem e a sua fé que protegeram os brasileiros e o direito de expressar sua convicção religiosa, de criticar autoridades e de divergir

Num Brasil em que os valores estão invertidos, em que as regras estão enfraquecidas, em que a confiança nas instituições está erodida e em que muitos têm medo dos desmandos do governo, a vitória do povo na Câmara dos Deputados é um sopro de renovação da esperança na nossa democracia e na nossa capacidade de resistir a desmandos do governo petista.

Nesta semana reverberaram as palavras de Ulysses Guimarães em 1987: “Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A nação quer mudar. A nação deve mudar. A nação vai mudar”.

A sua dedicação, coragem e fé venceram a batalha, mas ainda estamos em guerra. Após o reinado de Davi, o pastor que venceu Golias, o povo de Israel foi levado em cativeiro para a Babilônia, um período de cerca de 70 anos em que os judeus foram escravizados. O episódio serve de alerta: o preço da liberdade é a eterna vigilância.

Hoje, é dia de celebrar nossa vitória e reconhecer a resiliência de tantos brasileiros. Muitas vezes desanimamos, mas jamais desistimos. Ao mesmo tempo em que comemoramos, devemos ter consciência de que a luta pela liberdade e pela justiça é uma batalha constante.

O projeto da censura voltará a ser discutido. Há muitos interesses em jogo: desde interesses genuínos no aperfeiçoamento da democracia e do estado de direito até, no outro extremo, o interesse de fortalecer o controle do Estado sobre o debate público e reduzir a influência da direita conservadora.

É importante que o projeto seja muito aperfeiçoado, verdadeiramente reescrito, ou, então, que volte a ser rejeitado. Para isso, mais uma vez, a sua dedicação, coragem e fé serão fundamentais. Da mesma forma como Davi venceu um gigante e da mesma forma como nós, o povo, vencemos um gigante nesta semana, podemos vencer mais uma vez.


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