Conto

Por
Paulo Polzonoff Jr. – Gazeta do Povo


Com um gesto de autômato, ele apertava o botão discreto do letreiro que fazia brilhar para o mundo a pergunta quase indecorosa: “Quer ser meu amigo?”| Foto: Pixabay

Amigos nunca os tive, além da camaradagem. Amigo que entrasse em minha vida, que fosse um sócio dos meus entusiasmos, um confidente, me faltou sempre.

  • José Lins do Rego, Pureza.

Todos os dias eram assim. Ele acordava e, ainda descalço, arrastava seu corpanzil até a sala, cuja janelona dava para a rua. Com um gesto de autômato, ele apertava o botão discreto do letreiro que fazia brilhar para o mundo a pergunta quase indecorosa: “Quer ser meu amigo?”. Depois, ia para a cozinha preparar o café.

Da rua, que era bem mais movimentada antes da pandemia e cujas margens hoje são habitadas por uns poucos mendigos hostis, as pessoas que se deparavam todos os dias com a mensagem aprenderam a se esquecer dela. Por costume, sabe como é. Para esses, a pergunta tinha o mesmo sentido de um “Beba Coca-Cola”, “Just Do It” ou “O Brasil voltou”.

Para os que viam o letreiro pela primeira vez, porém, era como se a pergunta lhes fizesse cócegas em algo muito primitivo. Ao dar sentido às letras, palavras e o ponto de interrogação, era como se a porção divina declarasse guerra à outra porção, de origem indefinida – aquela que mais nos detém do que nos impulsiona.

Aquele cara ali, por exemplo. Não, não esse. O outro, de boina quadriculada. Ele vem em seu passo apressado e – atenção! – vai olhar o letreiro. Olhou. “Quer ser meu amigo?”, leu ele a primeira vez, sem entender direito a quem estava sendo feita a pergunta. É pra você mesmo, cara – dá vontade de falar. Ele lê uma segunda e uma terceira vez. Para concluir: que bobagem. E continuar em seu semitrotar até Deus sabe lá onde.

“E você quis?”
O gesto de cabeça do homem-de-boina desperta a curiosidade de outras pessoas que, não fosse por esse detalhe no comportamento alheio, jamais teriam a oportunidade de chegar em casa e dizer benhê, você não vai acreditar no que eu vi ali naquela rua. Ali, perto da praça, entre a avenida Xis e a alameda Ipsilon. A isso se segue uma breve descrição do letreiro. “E você quis?”, pergunta o benhê.

E assim vão se sucedendo as historietas. Maria toda compenetrada balança a cabeça e, por precaução, faz o sinal da Cruz. “Que tipo de pergunta é essa?”, pensa a porção mais cínica dela, recusando-se a tentar responder. Tivesse investigado um pouco mais a própria alma espremida entre os afazeres daquela manhã, talvez Maria tivesse encontrado a resposta que por um brevíssimo instante a incomodou.

A maioria, contudo, não tinha a mesma sorte. Quer ser meu amigo? Deve ser golpe. Quer ser meu amigo? Que ***dagem. Quer ser meu amigo? Tem que ser muito chato para perguntar uma coisa dessas. Quer ser meu amigo? Eu não! E se você for petista? Quer ser meu amigo? Só pode ser coisa de jovem. De velho. De gente querendo aparecer. Quer ser meu amigo? É pegadinha? Quer ser meu amigo? Tenho vontade de esganar esse tipo de gente! Quer ser meu amigo? O apartamento deve feder. Quer ser meu amigo? Eu não, seu pervertido!

Raros eram os que se davam ao penoso trabalho de ver no letreiro mais do que uma pergunta retórica de um louco e ainda por cima chato – provavelmente desses que falam em empatia e gratidão para um mundo insuportavelmente ensimesmado. E mesmo assim entre esses abundavam os utilitaristas. Talvez, mas o que é que eu ganho isso?, pensavam esses em mudez uníssona, como convém aos covardes.

“Quero”
De todos os que vi erguerem a cabeça para encarar a dúvida inoportuna, somente um se deteve para imaginar o apartamento habitado por um solitário crônico usando um remédio alternativo na esperança de curar aquela doença debilitante. Somente este anônimo teve a nobreza admirável, ainda que passageira, de cogitar apertar a campainha e dizer simplesmente “Quero”.

Nos poucos segundos em que se pôs dentro do apartamento do agora-novo-amigo, esse herói sem nome vislumbrou gargalhadas (“sabe aquela do papagaio?”), confissões (“sério?! sinto muito, cara”), coincidências (“não me diga! meu cunhado nasceu no dia 8”), gentilezas (“se não for incomodar…”) e aprendizados (“jura? não sabia!”). Entre a imaginação semiperfeira e o aperto de mãos com um desconhecido, porém, ele preferiu não cair no bueiro na vulnerabilidade. E seguiu adiante, legando a amizade ao amontoado fétido das intenções perdidas.

Antes de dormir, o personagem do primeiro parágrafo foi até a sala. Respirando fundo, como se fosse capaz de sentir todas as moléculas de oxigênio inflando os alvéolos antes de darem início à grande aventura pelo labirinto de artérias, veias e capilares, ele deu ao letreiro a sobrevida de dois ou três segundos. E o desligou.


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