Sexto sentido
Por
Paulo Polzonoff Jr. – Gazeta do Povo
Casas Particulares Heil: para jornalista, casas com sobrenome do proprietário são sinais do do Nazismo Estrutural Catarinense.| Foto: Reprodução/ Facebook
Ouvindo a dica de um amigo, a jornalista-com-nome-de-restaurante foi a Santa Catarina a fim de constatar com os próprios olhos aquilo de que ela já tem certeza, só de ouvir falar: o sul do Brasil está cheio de nazistas. E nazistas desavergonhados, ainda por cima. Assim guiada pelo viés de confirmação, em seu périplo por Urubici (até o nome da cidade é nazista!), ela se deparou com uma casa em cujo telhado se lia a palavra “HEIL”. Crente de estar diante de um furo jornalístico de proporções estratosféricas, a ativista não hesitou em usar seu espaço num jornal para se dizer visualmente agredida por uma saudação a Hitler.
Poucos dias antes, um conhecido militante petista usou as redes sociais para dizer que uma tiara de flores usada pela deputada federal catarinense (não é coincidência) Júlia Zanata tinha origem nazista. De acordo com o dublê de historiador, a tiara era usada por crianças arianas para saudar o Inominável. Disse mais, o militante. Disse que, por causa do uso insistente da famigerada tiara, a deputada deveria ser cassada.
E, finalmente, semana passada o deputado Paulo Bilynskyj foi acusado de exaltar “a participação de avô em exército de Hitler durante sessão da Câmara”. Atraído pela chamada escandalosa, lá fui eu assistir ao vídeo do discurso. Que em nenhum momento expressa esse orgulho ancestral do deputado pelo avô “nazista” que a manchete sugere. Em que pese a falta de tato histórico, o xará só exaltou (e se autoelogiou, como sói a um político) a luta da sua família, de origem ucraniana, contra o comunismo – aquele regime assassino que, só na União Soviética, consumiu a vida de dezenas de milhões de pessoas.
Em tempo:
As casas “nazistas” pertencem a um homem chamado Valmor Heil, dono das Casas Particulares Heil. No mais, Hitler pode ter tornado o “heil” famoso, mas a saudação não é exclusividade dos nazistas. Da mesma forma, embora nazistinhas de fato apareçam em fotos usando tiaras de flores semelhantes à da deputada, o acessório em si tem tanto a ver com o nazismo quanto uma foice e um martelo realmente usados por camponeses e carpinteiros têm a ver com o comunismo.
Por fim, na Ucrânia daqueles anos, quem lutou contra o comunismo na Segunda Guerra Mundial de fato lutou no exército de Hitler. Não havia escolha. Era o mal ou o mal. A sutileza (e inteligência e honestidade) está em distinguir os combatentes nazistas-com-ene-maiúsculo (racistas) daqueles que eram anticomunistas. Tampouco se pode esquecer que, sob o comunismo, no começo da década de 1930 a Ucrânia viveu o Holodomor. Daí porque tantos ucranianos, como os da família do deputado, viam “o exército de Hitler” como um mal menor. O problema é que não vivemos tempos dados a sutilezas.
Árvore, buraco, homem
O caso da colega que usou de todo o seu “faro jornalístico” para ver nazismo onde havia apenas um sobrenome me lembrou de uma conversa recente que tive com o grande Carlos Alberto Di Franco. Falávamos sobre a desprezada arte jornalística de retratar a realidade. Uma espécie assim de ofício místico que os grandes mestres chamavam de “objetividade”. Era o cálice sagrado de quem ganhava a vida contando o que acontecia por aí.
Antigamente (esse tempo cuja perfeição na hora ninguém percebeu) uma árvore caída no meio da rua, um buraco na calçada ou um pedreiro que caiu da escada eram apenas uma árvore caída no meio da rua, um buraco na calçada e um pedreiro que caiu da escada. Mas não se preocupe, não. Ele já está melhor. Obrigado por perguntar.
Hoje (esse tempo cuja imperfeição insistente nos revolta) a árvore caída é mais. É um verdadeiro tratado do descaso da Humanidade para com a mãe Terra; é uma prova da ganância capitalista; é sobretudo um sinal de que o mundo em breve acabará se nada for feito imediatamente. O buraco na calçada tampouco é o que parece ser. Trata-se de um retrato do descaso dos políticos; da falência da democracia; uma prova de que o socialismo não funciona ou de que só o socialismo funciona. E o que aconteceu ao pedreiro jamais voltará a ser apenas um acidente. Obviamente, trata-se de uma tragédia causada pela relação desigual entre o ser humano e a Lei da Gravidade, essa fascista.
Sintomático
No texto em que denuncia o Nazismo Estrutural Catarinense (em breve, nas piores livrarias), a moça cujo nome optei por não mencionar (ver nota abaixo) diz que até pensou em procurar os donos das “casas nazistas” e bater um papo. Mas, por medo, achou melhor seguir viagem, vivendo na ignorância agora exposta ao debate público. O medo, contudo, é infundado, e nasce de uma visão de mundo ensimesmada, que não permite enxergar no outro apenas um ser humano que tem uma origem cultural e, talvez, visões políticas diferentes das suas.
Um ser humano que, no limite da caricatura, pode até odiar Lula, considerar Bolsonaro um mito, tomar chimarrão, afirmar que certas práticas sexuais são pecado, defender a propriedade privada, ouvir vanerão, dizer assim à toa que “no tempo dos militares é que era bom” e, ocasionalmente, ser a favor da pena de morte. Mas que não é seu inimigo e, se você pedir, provavelmente lhe dará caridosamente um pedaço de pão e um copo d’água. E, se calhar, até um abraço!
É grave! A feminista (se uma mulher que chama o marido de “companheiro” não se declarar feminista, ficarei muito decepcionado) recusa um diálogo trivial e esclarecedor por receio de que a realidade, sempre menos dramática do que dizem os intelectuais, derrube seu castelinho ideológico. E a obrigue a reconhecer, mesmo em silêncio, que está errada. Se isso não é a submissão total do indivíduo à mentalidade de grupo – algo que, aliás, estava no cerne do mesmo movimento de massa que a escritora tanto teme – não sei o que é.
Notas, Polzonotas
Conforto
Nem bem tinha botado um ponto final na crônica de ontem, me veio a dúvida: por que preferimos sempre o conforto à luta política cuja nobreza e importância vivemos exaltando nas redes sociais?
Urubici
Claro que “urubici” não é uma palavra nazista, né? Mas, para aqueles que se recusam a entender uma ironia, e a título de curiosidade, vale explicar que a palavra tem duas origens possíveis: tupi ou kaigang. E significa “fileira de urubus” e “mãe das águas frias”, respectivamente.
Mas há também quem diga que o nome da cidade foi dado numa estranha homenagem a um explorador que tinha um amigo chamado Bici, que gostava de observar urus – uma ave comum na região. Sempre que via um uru, portanto, o explorador corria chamar o amigo, dizendo: “Uru, Bici! Uru, Bici”.
Uma prova de que, quanto mais estranha a etimologia da palavra, melhor ela é.
Abolição do homem
Fiquei aqui debatendo com meus botões se mencionava ou não o nome da autora do texto sobre as “casas nazistas”. Por fim, decidi mantê-la num anonimato que, bem sei, é inútil. Tudo por causa das primeiras páginas do livro “A Abolição do Homem”, de C. S. Lewis, que reli no fim de semana. São admiráveis a elegância e o cuidado que Lewis toma para fazer uma crítica devastadora de um livro. Se segui bem o exemplo cristão de Lewis, não sei. Mas tentei.
Lacração à droite
Sobre o caso das tiaras que mencionei no texto acima, a deputada Júlia Zanata decidiu recorrer a uma lei feminista para enquadrar Chico Pinheiro. Ela acusa o militante de “violência política contra a mulher”. Ah, essa direita…
Racismo
Revoltante o episódio de racismo envolvendo o jogador Vinícius Jr., etc. e tal. Mas está longe de ser novidade – e não haverá lei capaz de impedir certas maldades impressas na alma dos idiotas.
Aquele abraço!
Há um ano, Bolsonaro abraçava Alexandre de Moraes durante uma cerimônia no TST. Ninguém deu muita bola para o ocorrido, mas eu escrevi que:
“Tudo na cena é digna de apreciação, análise e, como pretendo afirmar em seguida, admiração. Bolsonaro chega com aquele sorriso mezzo carioca, mezzo joão-sem-braço, envolve com uma curiosa efusividade dois pachecos cujo nome não vou me dar o trabalho de pesquisar e, ao avistar o reizinho Alexandre de Moraes carrancudamente sentado no trono, faz um gesto desses que a gente faz no bar para os amigos. Algo do tipo “levanta aí, cara, deixa de frescura!”.
Do túnel do tempo…
Por que gostamos de falar de política, sobretudo em tempos de crise? Gostamos de falar de política porque nos sentimos importantes. Acreditamos que nossa opinião tem influência, que nossos insights iluminarão toda a conjuntura do país – o que quer que signifique isso. Mas não só. Discutimos política (o dia todo!) porque essa interação com as manchetes faz com que nos sintamos vivos e pertencentes a algo maior: o tempo e seu espírito. Quando, na realidade, em nossa obsessão somos apenas jóqueis de Leviatã, condenados a passar eternos oito segundos cavalgando o monstro intangível, na esperança vã de dominá-lo.
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