Editorial
Por
Gazeta do Povo


O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou o bloqueio das redes sociais do influenciador digital Monark.| Foto: Carlos Moura/SCO/STF.

A ideia de viver sob o totalitarismo causa horror à maioria das pessoas. Difícil acreditar que alguém possa querer viver em um Estado onde as liberdades individuais são suprimidas e o que vale é a vontade despótica de um governante. Esses terríveis regimes – são numerosos em todo o mundo –, nem sempre são instituídos de forma abrupta; não raras vezes, é a contínua deterioração das instituições e o cerceamento gradual às liberdades que vai preparando o caminho para que, anos ou décadas mais tarde, se instale o horror totalitário de vez. O maior risco, neste caso, é não perceber a ameaça – ou fingir que ela não existe.

Quase sempre, uma das primeiras liberdades a desaparecer é a liberdade de expressão e de crítica, justamente porque apenas onde ela existe é possível apontar abusos ou questionar ações contrárias ao espírito da democracia vindas de governantes, políticos ou representantes de qualquer um dos Poderes. Por isso sua defesa é tão importante e precisa ser contínua, sem nunca baixar a guarda. Ela é crucial para a sobrevivência e florescimento da democracia. Ora, é precisamente esse direito que tem sido insistentemente minado em nosso país.

Não há como se falar em democracia quando os cidadãos se veem em estado de constante insegurança sobre o que podem ou não dizer.

Parece estar-se disseminando a ideia nefasta de que a liberdade de expressão e de crítica não é, assim, tão relevante; que novas restrições – nunca antes aceitas, a não ser em regimes despóticos – podem ser adotadas; que cerceamentos a qualquer momento e sob qualquer pretexto, antes impensáveis, podem ser impostos, criando-se um verdadeiro Estado de exceção. Tudo sob a aceitação tácita das vozes que deveriam se insurgir. Exemplos não faltam. Em um dos mais recentes, na quarta-feira (14), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou o bloqueio das redes sociais do influenciador digital Bruno Monteiro Aiub, conhecido como Monark. A decisão proíbe Monark de “publicar e compartilhar desinformação”, sob pena de multa de R$ 10 mil em caso de descumprimento. A determinação foi baseada em um relatório produzido pela assessoria de enfrentamento à desinformação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Na petição enviada ao Supremo, a corte eleitoral informou sobre a publicação de um vídeo de Monark na rede social Rumble, no dia 5 de junho, também replicado em outras plataformas. As falas consideradas “criminosas” pelo STF versam sobre o papel do STF e do TSE em relação à segurança das eleições. “Por que ele [Supremo] está disposto a garantir uma não-transparência nas eleições? A gente vê o TSE censurando gente, Alexandre de Moraes prendendo pessoas, um monte de coisas acontecendo e, ao mesmo tempo, eles impedindo a transparência das urnas? Você fica desconfiado. Que maracutaia está acontecendo nas urnas ali? Qual é o interesse? Manipular as urnas?”, diz Monark no vídeo.

Por mais que tenham desagradado a Moraes, as falas de Monark jamais poderiam ser confundidas com um crime e, portanto, censuradas.

Para Moraes, a fala de Monark deveria ser censurada para “interrupção de eventual propagação dos discursos com conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática”. Difícil ver nas críticas do influencer uma ameaça às instituições: são a expressão de um posicionamento crítico em relação à atuação do Judiciário, algo absolutamente normal, ao menos nas democracias. Por mais que tenham desagradado a Moraes, as falas de Monark jamais poderiam ser confundidas com um crime e, portanto, censuradas. Estranha também a existência de uma “assessoria de enfrentamento à desinformação”, dando ao Judiciário a feição de um vigilante continuamente à caça de pretensas barbaridades, muito à semelhança dos órgãos de censura da ditadura.

Em outra frente, a Câmara de Deputados, talvez inspirada na pouca tolerância do Judiciário com as críticas, aprovou em regime de urgência nesta quinta (15) um projeto de lei que institui o crime de “discriminação” contra políticos. Uma versão inicial do projeto, apresentada pela deputada Dani Cunha (União Brasil-RJ), chegou a propor explicitamente pena de dois a quatro anos de prisão e multa a quem criticasse uma pessoa “politicamente exposta” ou denunciada e até mesmo condenada em processos que ainda não tenham transitado em julgado. É concebível que alguém tenha tido o desplante de propor isso, contra toda a tradição democrática de amplíssima margem de liberdade de crítica a governos, partidos políticos e homens públicos? Mais. É concebível que tal anomalia tenha sequer sido considerada pelos parlamentares? O fato é que, sim, foi, tanto proposta quanto avaliada, sem espanto por parte de ninguém, o que dá um retrato dos tempos em que vivemos.

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Felizmente o texto, quanto a isso, acabou alterado. Permaneceu, no entanto, a menção à discriminação. Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, justificou a pressa na votação argumentando que se o projeto não fosse votado, a Câmara iria “continuar permitindo que parlamentares sejam agredidos em aviões, nos hotéis, nas festas”. Que pena que o presidente de uma das “casas do povo” se utilize de uma falácia para defender um privilégio inaceitável nas democracias, como se não houvesse leis que protegessem quaisquer cidadãos de agressões, e como se submeter-se a eleições não fosse colocar-se voluntariamente sob o olhar contínuo da população, que, irá uma vez ou outra expressar de forma enfática e legítima, sem violência física, suas críticas em relação à atuação dos políticos.

A liberdade de expressão não é absoluta, bem o sabemos, mas está se aceitando que ela seja minúscula, quando não nula. Não há como se falar em democracia quando os cidadãos se veem em estado de contínua insegurança sobre o que podem ou não dizer. Devido às constantes decisões tomadas pelas cortes de Justiça, muitos políticos, jornalistas, influenciadores, juristas e membros da sociedade civil já temem manifestar-se em público e, pior, mesmo em grupos privados. Não sabem o que é lícito ou ilícito. Temem sobretudo lançar críticas sobre a atuação dos membros do Poder Judiciário ou de políticos, pois julgam que correm o risco de se tornarem alvo de sanções, o que é a negação da essência da democracia.

Está sendo criado – independentemente das intenções que movem seus criadores ou da consciência que possam ter de suas ações – um império do medo, semelhante ao dos regimes autocráticos, onde o cidadão precisa conviver com o risco constante de que suas palavras – mesmo que totalmente dentro do que é razoável em uma sociedade livre – sejam consideradas um atentado contra o próprio Estado e punidas com severidade. Isso é inadmissível e não pode mais passar despercebido. É preciso que mais vozes se pronunciem com coragem contra esse estado de coisas, antes que seja tarde.


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