História por Emily Katz – The Conversation* – BBC News Brasil

As lições de Aristóteles para entender se somos amigos por prazer ou por interesse© Getty Images

Embora a maioria das músicas seja inspirada nas alegrias e dissabores do amor romântico, as relações entre amigos podem ser tão intensas e complicadas quanto as amorosas.

Muita gente se esforça para fazer novos amigos ou manter uma velha amizade, e um rompimento com um amigo próximo pode ser tão doloroso quanto terminar um namoro.

Apesar dos riscos potenciais, os seres humanos sempre valorizaram a amizade. Como escreveu o filósofo Aristóteles no século 4º a.C.: “Ninguém escolheria viver sem amigos”, mesmo que pudesse ter todas as outras coisas boas no lugar.

Aristóteles é conhecido, acima de tudo, por sua influência na ciência, na política e na estética, e não exatamente por seus escritos sobre amizade.

Eu estudo a filosofia grega antiga e, quando abordo esse assunto com meus alunos, eles ficam surpresos com o fato de um pensador grego da Antiguidade conseguir lançar tanta luz sobre seus próprios relacionamentos. Mas talvez não seja surpresa: a amizade existe há tanto tempo quanto os seres humanos.

Eis, então, três lições sobre esse tema que Aristóteles ainda pode nos ensinar.

Aristóteles definiu três tipos de amizade© Getty Images

1. A amizade é recíproca e reconhecida

A primeira lição vem da definição de amizade de Aristóteles: boa vontade recíproca e reconhecida. Diferentemente da paternidade/maternidade ou da irmandade, a amizade só existe se for reconhecida por ambas as partes.

Como diz Aristóteles: “Convém, então, que um tenha boa vontade com o outro e se desejem todo o bem, e e que entendam isso um do outro, e isso por algumas das razões que já foram ditas.”

Aristóteles ilustra esse ponto trazendo para a discussão o relacionamento parassocial: um tipo de relacionamento unilateral em que alguém desenvolve sentimentos amigáveis ​​e até sente que conhece uma figura pública.

Em seu exemplo, o filósofo menciona um torcedor que pode desejar o melhor a um atleta e se sentir emocionalmente envolvido em seu sucesso. Mas como o atleta não retribui ou reconhece essa boa vontade, eles não são amigos.

Isso é tão verdadeiro hoje quanto era na época de Aristóteles. Pense em como você não pode ser amigo de alguém no Facebook, a menos que a pessoa aceite a solicitação de amizade. Por outro lado, você pode ser seguidor de alguém nas redes sociais sem que necessariamente o dono da conta te conheça.

Hoje, contudo, pode ser mais difícil distinguir amizades de relacionamentos parassociais.

Quando os criadores de conteúdo compartilham detalhes sobre suas vidas pessoais, seus seguidores podem desenvolver uma sensação unilateral de intimidade. Eles sabem coisas sobre a pessoa que estão seguindo que, antes do advento das redes sociais, apenas um amigo próximo saberia.

O criador de conteúdo, por sua vez, pode sentir boa vontade para com seus seguidores, mas isso não é amizade. A boa vontade não é genuinamente recíproca se uma das partes a sente em relação a um indivíduo, enquanto a outra a sente em relação a um grupo.

Desta forma, a definição de amizade de Aristóteles esclarece a natureza de uma situação essencialmente moderna.

Aristóteles é conhecido por suas contribuições para a ciência e a política, mas ele também escreveu sobre amizade© Getty Images

2. Três tipos de amizade

Em seguida, Aristóteles distingue três tipos de amizade: aquela baseada na utilidade, no prazer e no caráter. Cada uma surge a partir do que é valorizado no amigo: sua utilidade, o prazer de sua companhia ou seu bom caráter.

Embora a amizade baseada na índole seja a forma mais elevada, só se consegue ter alguns amigos íntimos. Demora muito para conhecer o caráter de alguém — e é preciso passar muito tempo junto para manter uma amizade assim.

Como o tempo é um recurso limitado, a maioria das amizades será baseada no prazer ou na utilidade.

Às vezes, meus alunos argumentam que relacionamentos utilitários não seriam realmente amizades. Como duas pessoas que se usam podem ser amigas? No entanto, quando ambas as partes enxergam sua amizade da mesma forma, elas não estão explorando uma à outra, mas se beneficiando da relação.

Como explica Aristóteles, “diferenças entre amigos geralmente surgem quando a natureza de sua amizade não é o que eles acreditam que seja”.

Se sua colega de estudos pensa que vocês são amigos porque você gosta da companhia dela, mas na verdade a amizade está baseada no fato de que ela explica bem cálculo, ela pode se sentir magoada.

Mas se ambos entenderem, por exemplo, que um precisa melhorar a nota de cálculo e o outro, a de redação, vocês podem desenvolver boa vontade e respeito mútuos com base nos pontos fortes de cada um.

Na verdade, a natureza limitada de uma amizade utilitária pode ser exatamente o que a torna benéfica. Considere uma forma contemporânea de amizade útil: o grupo de apoio entre pares.

Como só se pode ter um pequeno número de amizades baseadas no caráter, muitas pessoas que estão passando por traumas ou lutando contra doenças crônicas não têm amigos próximos que estão passando por essas experiências.

Os membros de um grupo de apoio estão em uma posição única para ajudar uns aos outros, mesmo que tenham valores e crenças pessoais muito diferentes. Essas diferenças podem significar que as amizades nunca vão se basear na índole de cada um; no entanto, os membros do grupo podem sentir boa vontade uns pelos outros.

Em suma, a segunda lição de Aristóteles é que existe um lugar para todo tipo de amizade — e que uma amizade funciona quando há um entendimento compartilhado de sua origem.

Manter contato é o segredo para cultivar uma amizade© Getty Images

3. A amizade é como estar em forma

Finalmente, Aristóteles tem algo valioso a dizer sobre o que faz as amizades durarem. Ele afirma que a amizade é um estado ou disposição que deve ser mantido por meio da atividade: assim como a forma física é mantida pelo exercício regular, a amizade é mantida fazendo coisas juntos.

Então, o que acontece quando você e seu amigo não podem participar de atividades juntos?

Aristóteles escreve: “Amigos que… se separam não são amigos ativamente, mas têm disposição para sê-lo. Pois a separação não destrói absolutamente a amizade, embora impeça seu exercício ativo. Porém, se a ausência se prolonga, parece provocar um esquecimento do próprio sentimento de amizade”.

Pesquisas recentes confirmam isso: a amizade pode ser mantida mesmo sem atividades compartilhadas, mas, caso seja esta a situação por muito tempo, a amizade vai desaparecer.

Pode parecer que o argumento de Aristóteles perdeu sua relevância, uma vez que as tecnologias de comunicação — do correio tradicional ao FaceTime — tornaram possível manter amizades a grandes distâncias.

Mas mesmo que a separação física não signifique mais o fim de uma amizade, a lição de Aristóteles ainda é válida.

Pesquisas mostram que, apesar da tecnologia, as pessoas que reduziram suas atividades no primeiro ano da pandemia de covid-19 sentiram um declínio correspondente na qualidade de suas amizades.

Hoje, assim como na antiga Atenas, os amigos devem continuar fazendo atividades juntos.

Aristóteles não poderia ter imaginado a tecnologia de hoje, o surgimento de grupos de apoio online ou os tipos de relacionamentos parassociais que as redes sociais proporcionam. No entanto, apesar de tudo que mudou no mundo, seus escritos sobre amizade ainda são relevantes.

*Emily Katz é professora associada de filosofia grega antiga na Michigan State University, nos Estados Unidos.

*Este artigo foi publicado no site The Conversation e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons. Clique aqui para ler a versão original (em espanhol).

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