Jornal Estadão
Aline Zero Soares, PhD em educação pela University of California, Los Angeles – UCLA e mestre em gestão e políticas públicas pela Fundação Getulio Vargas – FGV. Integra a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e a equipe do Programa Escola em Tempo Integral do Ministério da Educação
A agenda da educação integral tem estado sob holofotes no debate público recente, aparecendo como uma das políticas educacionais prioritárias do governo federal. Nesta semana, a sanção presidencial da lei que institui o Programa Escola em Tempo Integral foi comemorada por atores diversos da área, tendo em vista que pode significar a retomada do papel federal em fomentar e apoiar a expansão da jornada escolar e a formação integral dos estudantes. Educadores, especialistas e gestores públicos têm considerado esta uma das principais apostas para que o país avance na melhoria da qualidade da educação básica, visando ao aprimoramento dos resultados acadêmicos e sociais da educação.
Todavia, nem sempre o sentido de educação integral é tratado de forma consensual, seja no debate ou na forma de implementação das políticas públicas. Além disso, enquanto é comum se ter mais clareza sobre os resultados de performance acadêmica – histórica e mundialmente medidos por índices de desempenho em disciplinas como línguas, matemática e ciências da natureza -, as águas ficam mais turvas quando se tenta aferir os resultados sociais da educação, sejam eles relacionados ao indivíduo, à escola e à comunidade, ou à sociedade. E quando se consideram os dois temas juntos, a questão fica ainda mais curiosa: afinal, o que se quer dizer com educação integral e quais seriam os resultados sociais associados a esta perspectiva educacional?
O tema da educação integral na educação básica remonta a um debate de mais de um século na agenda educacional. Introduzido pelo Manifesto dos Pioneiros da Educação e mais diretamente pelo educador Anísio Teixeira, que defendia a importância da educação para a formação dos estudantes em suas diversas dimensões (tais como a cognitiva, a física, a social, a cultural e a artística) e ressaltava que a construção de uma sociedade democrática não seria possível sem que a educação exercesse o seu papel de fomentar valores e práticas democráticas.
É uma agenda que foi implementada de forma mais pontual do que massiva ao longo do século XX e que foi influenciada e beneficiada por educadores brasileiros reconhecidos como Paulo Freire, Maria Nilda Mascelani e Darcy Ribeiro. Em décadas recentes, a agenda foi resgatada por políticas públicas voltadas a este propósito, dentre as quais se destaca o programa federal Mais Educação, que, entre 2007 e 2016, construiu importante legado de expansão do tempo na perspectiva da educação integral no Brasil. Estados e municípios também fizeram esforços recentes buscando manter ou expandir a implementação da agenda, e a pesquisa acadêmica cresceu de maneira exponencial sobre o tema nas últimas duas décadas.
Com base nesse percurso histórico, construído a tantas mãos e brevemente descrito acima, a compreensão de educação integral aqui considerada com potencial para efetivamente melhorar a qualidade da educação básica pública brasileira refere-se à expansão da jornada escolar não apenas para que se continue a trabalhar os mesmos conteúdos nas mesmas abordagens pedagógicas, mas, sim, que vislumbre os sujeitos em todas as suas dimensões e garanta a sua preparação para a vida e para a cidadania. Trata-se de expandir as oportunidades de aprendizagens de estudantes para que também se desenvolvam socialmente, emocionalmente, fisicamente, culturalmente e politicamente enquanto indivíduos e cidadãos pertencentes a contextos locais e globais.
A educação verdadeiramente integral preocupa-se com relações mais humanizadas entre estudantes e educadores, procura conectar os conteúdos e as experiências educacionais na escola com a vida da pessoa, pressupõe que haja exercício da democracia na prática na escola – e não apenas ouçam falar dela -, fomenta a sua autonomia e o seu protagonismo em seus processos de aprendizagem, e valoriza os potenciais educativos do território e as características culturais e participação da comunidade local. Ademais, ao não ignorar o estudante em suas múltiplas dimensões, a escola certamente precisa contar com políticas e ações intersetoriais que deem suporte a seu atendimento global, tais como saúde, cultura e assistência social. Apesar dos desafios envolvidos na implementação de tal perspectiva, experiências concretas brasileiras vêm mostrando que os resultados acadêmicos e sociais valem o investimento necessário.
Os resultados acadêmicos e sociais da educação integral são também palpáveis. Em pesquisa recente que desenvolvi por meio do estudo qualitativo aprofundado de casos de escolas brasileiras internacionalmente reconhecidas como inovadoras, democráticas e voltadas à formação plena dos sujeitos, foi possível identificar que a melhoria dos resultados de aprendizagem acadêmica nas experiências analisadas estava diretamente relacionada com a abordagem de educação integral adotada pelas escolas investigadas.
De fato, isso está em sintonia com a literatura nacional e internacional que vem desenvolvendo um consenso quanto à relação positiva entre a performance acadêmica e fatores como a saúde mental, o desenvolvimento socioemocional, o bem-estar, e a importância de o estudante relacionar-se com o conteúdo de modo que faça sentido para sua vida, sua cultura e seus interesses.
Pesquisas em áreas diversas, como a neurociência, a psicologia e a pedagogia indicam que o processo de aprendizagem se beneficia e necessariamente precisa dessas condições para ocorrer. Considerando-se as inúmeras e multidimensionais barreiras (sociais, econômicas, baseadas em discriminações raciais e outras) que as crianças e jovens brasileiros da escola pública enfrentam em suas rotinas, faz-se ainda mais urgente que a escola não ignore essas outras dimensões se, de fato, quisermos melhorar os indicadores de aprendizagem. Em outros termos, sem este olhar integral, dificilmente alcançaremos as taxas de IDEB que gostaríamos ou reduziremos a evasão como almejamos.
Mas, os ganhos da educação integral vão para muito além dos acadêmicos, pois envolvem uma série de resultados sociais associados à implementação dessa perspectiva. Tais resultados sociais podem ser compreendidos como ganhos em termos de saúde, bem-estar, redução da violência, formação para a autonomia e o alcance de direitos de cidadania, engajamento político, social e redução das desigualdades de oportunidades educacionais e sociais.
Nas experiências analisadas no estudo citado, por exemplo, os índices de violência dentro e fora da escola caíram significativamente, alcançando inclusive uma comunidade inteira ao redor de uma das escolas, dada a potencialidade da ampliação de coesão social relacionada à disseminação de valores construídos de forma muito próxima entre a escola, as famílias e os principais representantes da comunidade local. Outro exemplo de resultado social se refere à criação de uma cultura escolar empática e antidiscriminatória que formou estudantes carregados de tais características a ponto de desenvolverem projetos relacionados a esses valores dentro e fora da escola ou de recuperarem o vínculo com a educação e o gosto pelo conhecimento depois de sofrerem discriminação em suas escolas anteriores.
A implementação da expansão da jornada escolar na perspectiva da educação integral não se trata de tarefa simples ou sem custos financeiros, mas trata-se de caminho necessário para que consigamos efetivamente melhorar a qualidade da escola básica pública brasileira, bem como seus resultados acadêmicos e sociais. Que políticas públicas como o Programa Escola em Tempo Integral possam ser retomadas e contribuir com esse desafio junto a estados, municípios, Distrito Federal e toda a sociedade brasileira.
*Esse texto é fruto de parceria entre o Diálogos Públicos, a ANESP e o Gestão, Política & Sociedade.