Especialistas dizem que a pandemia e suas consequentes mudanças no mundo do trabalho podem estar encorajando as pessoas a repensar o quanto a paixão pelo que fazem é essencial

Por Alina Tugend – Jornal Estadão

Siga sua paixão. Este talvez seja o conselho mais comum dado àqueles em busca de um emprego. A insinuação: você só consegue dar o seu melhor no trabalho quando faz algo que gosta de verdade.

No entanto, de acordo com um número crescente de pesquisas, uma ênfase excessiva na paixão pelo trabalho pode ser prejudicial de várias maneiras.

“Não dá oportunidade para desenvolver uma identidade fora do trabalho”, disse Erin Cech, professora de sociologia da Universidade de Michigan. “Além disso, os empregadores que priorizam a paixão esperam que as pessoas dediquem mais tempo e energia sem receber mais.”

A pandemia pode ser um dos fatores que está levando as pessoas a reavaliarem a essencialidade da paixão pelo que fazem.
A pandemia pode ser um dos fatores que está levando as pessoas a reavaliarem a essencialidade da paixão pelo que fazem.  Foto: Moor Studio / ADOBE STOCK

Embora a ideia de que um trabalho não precise ser uma vocação não seja nova, especialistas disseram que a pandemia e as mudanças causadas por ela no mundo do trabalho podem estar encorajando as pessoas a repensar o que a paixão pelo que fazem realmente significa.

“Disseram para a gente que só é possível se realizar pelo trabalho, mas as pessoas estão começando a ver que há outros aspectos da vida tão ou mais importantes que o trabalho”, disse Jae Yun Kim, professor de ética nos negócios da Asper School of Business, da Universidade de Manitoba. “As pessoas estão começando a tratar o trabalho como trabalho, e isso é um bom sinal.”

Antes da década de 1970, a paixão não era uma prioridade daqueles em busca de um emprego, disse Erin, autora de “The Trouble With Passion: How Searching for Fulfillment at Work Fosters Inequality” (O Problema da Paixão: Como a Busca pela Realização no Trabalho Promove a Desigualdade, em tradução livre). Em vez disso, o foco estava em salários decentes, no número de horas trabalhadas e na estabilidade, e caso existisse realização, ela chegaria mais tarde, conforme você se tornava mais qualificado no trabalho.

Entretanto, isso começou a mudar nos anos 1970, com a crescente instabilidade no trabalho e uma ênfase cultural cada vez maior na expressão das próprias ideias e da satisfação pessoal, uma mudança retratada no livro extremamente conhecido de 1970 “Qual a Cor do seu Paraquedas?”.

Como bem se sabe, preocupar-se com a realização no trabalho aplica-se em grande parte ao privilegiado mundo dos funcionários de escritório. “A maioria das pessoas não trabalha para se realizar”, disse Simone Stolzoff, que escreveu o livro “The Good Enough Job: Reclaiming Life From Work (O Trabalho Bom o Suficiente: Recuperando a Vida do Trabalho, em tradução livre). “Elas trabalham para sobreviver.”

Também é importante levar em consideração o preço que você pode estar pagando por amar seu trabalho. Um artigo publicado no Journal of Personality and Social Psychology, para o qual Kim contribuiu, analisou sete estudos e uma meta-análise e descobriu que a paixão pode ser usada para legitimar “práticas de gestão injustas e degradantes”, incluindo pedir aos funcionários que trabalhem horas extras sem ser pagos por isso, trabalhem nos fins de semana e lidem com tarefas não relacionadas com sua função.

Um dos estudos constatou que os gestores de vários setores perceberam que os subordinados aparentemente mais apaixonados por seus empregos do que os colegas “tinham mais chances de se voluntariar para fazer um trabalho extra (sem remuneração adicional) e serem recompensados pelo trabalho, o que, por sua vez, antecipava uma maior legitimação da exploração” desse trabalhador.

Isso não se aplica apenas aos indivíduos, mas a profissões inteiras, como nas áreas de criatividade e cuidado, onde se presume que as pessoas têm “uma vocação” que pode compensar os salários mais baixos; como no caso de enfermeiros ou professores, por exemplo.

Maggie Perkins não precisa de pesquisa acadêmica para entender a conexão entre paixão pelo trabalho e exploração. Maggie, 31 anos, foi professora do ensino fundamental e médio durante oito anos na Flórida e na Geórgia. O anúncio público dela no TikTok de que tinha pedido demissão e estava mais feliz trabalhando como funcionária na Costco atraiu a atenção da mídia e teve milhões de visualizações.

Seis meses depois, esse sentimento permanece. “Acredito plenamente que o sistema educacional se baseia na exploração do trabalho do professor, até mesmo em lugares com sindicatos fortes”, disse Maggie, acrescentando que os salários baixos, assim como a redução da autonomia na forma como ela dava aula, fizeram com que ela desistisse da profissão.

“Eu era sem dúvidas boa no que fazia”, disse ela. “Mas precisei escolher entre cuidar de mim ou não.” (Maggie foi recentemente promovida na Costco a instrutora corporativa.)

Escolher um curso ou uma carreira com base no que você gosta de fazer também pode reforçar estereótipos de gênero, disse Sapna Cheryan, professora de psicologia da Universidade de Washington, em Seattle. Inúmeros estudos conduzidos por ela e seus colegas constataram que, quando se pedia ao alunos pré-universitários para escolher um curso ou profissão com base no conselho “siga a sua paixão”, as escolhas recaiam em papéis tradicionais: os homens costumavam escolher áreas como informática e engenharia e as mulheres optavam com mais frequência por arte e cuidado de pessoas, por exemplo.

No entanto, se em vez disso fossem solicitados a escolher uma carreira com base na estabilidade do emprego e salário ou escolher uma profissão focada em cuidar de outras pessoas, essa diferença de gênero diminuía consideravelmente, disse ela. Os resultados não variaram de acordo com raça ou renda, acrescentou Sapna.

Embora a associação entre paixão e carreira exista em outros países, ela é particularmente forte nos Estados Unidos, segundo os especialistas, devido a sua ênfase no individualismo, na importância do trabalho e na relativa falta de movimentos sindicais fortes.

Uma forma de verificar se você caiu naquilo que Taha Yasseri, professor de sociologia da Universidade College Dublin, chamou de “paixão obsessiva” – quando sua carreira ofusca todas os demais aspectos da sua vida –, basta perguntar a si mesmo se você consegue se desligar de seu trabalho e focar na família, em hobbies ou em outras partes de sua vida. Se a resposta for “não”, talvez você queira repensar suas prioridades.

Foi o que Alex, 27 anos, fez. (Ele pediu para não ter seu sobrenome publicado por medo de parecer menos apaixonado por seu trabalho.) Durante três anos, Alex trabalhou pelo menos 60 horas por semana em seu emprego como gestor de uma cadeia de suprimentos para uma empresa listada na Fortune 500. Ele sempre estava motivado e “percebi que estava viciado no ambiente de trabalho, viciado no meu trabalho e, olhando para trás, aquilo era muito insalubre”, disse ele, acrescentando que o relacionamento com a namorada também foi prejudicado.

Quando foi promovido e transferido para um novo estado, ele decidiu reduzir o número de horas trabalhadas para algo mais viável, 40 horas por semana. Alex salientou que continua recebendo as mesmas avaliações positivas de desempenho sem aquele número excessivo de horas trabalhadas ou preocupações constantes.

“Meu trabalho é bom. Não vou para a cama sonhando com ele”, disse Alex. “E me sinto ótimo em relação a isso.”

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