País nórdico, que tem vagas abertas para estrangeiros, inclusive do Brasil, oferece jornada máxima de 40 horas semanais, férias ampliadas e até lugar para cochilar no escritório
Por Jayanne Rodrigues – jornal Estadão
Em 2021, a designer de games Ana Camargo, 29, decidiu fazer uma mudança radical: trocou a carreira estabelecida no Brasil para se arriscar no mercado de trabalho da Finlândia por flexibilidade e qualidade de vida. Antes, trabalhava 14 horas por dia. Hoje, a jornada diária não ultrapassa sete horas. Assim como Ana, outros brasileiros estão mudando para o país nórdico em busca de um estilo de vida mais desacelerado, com jornadas de trabalho reduzidas e uma cultura profissional mais flexível.
Em 2023, pelo sexto ano seguido, a Finlândia foi considerada o país mais feliz do mundo, segundo o Relatório Global sobre Felicidade. O país oferece vagas para trabalhadores estrangeiros, inclusive brasileiros.
A Finlândia tem baixos índices de desigualdade social, além de altos nível de segurança e investimento em educação, mas também enfrenta escuridão e frio ao longo de quatro meses. O que tem atraído os brasileiros?
Mais equilíbrio entre trabalho e vida pessoal
As condições climáticas são compensadas por uma forma de trabalho mais equilibrada, afirma Maria José Tonelli, professora titular da FGV-Eaesp e coordenadora do Núcleo de Estudos em Organizações e Pessoas.
Tonelli explica que essas diferenças foram acentuadas durante a crise sanitária de covid-19. “O Brasil é muito ‘presenteísta’. Então, depois da pandemia, muitas empresas retomaram o modelo tradicional (presencial)”, avalia.
Outro fator em jogo é o desequilíbrio entre tempo dedicado ao trabalho e remuneração. “Nós exigimos muito e pagamos pouco. É uma exigência super alta para ganhar relativamente pouco comparado com o cenário internacional.”
No Brasil, a semana de trabalho pode alcançar até 44 horas. A lei finlandesa estabelece um teto de até 40 horas por semana. Porém, os trabalhadores têm autonomia – prevista por lei – para negociar redução de carga horária.
No ranking das nações com jornadas mais extensas, o Brasil ocupa o 10º lugar, segundo dados mais recentes da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
A pesquisa sugere que os brasileiros dedicam mais tempo ao emprego do que aos cuidados pessoais, enquanto os finlandeses usam 63% do dia – ou 15,2 horas – à vida pessoal.
A organização do trabalho no Brasil difere do formato praticado lá fora, afirma a professora Tonelli. “Você trabalha das 9h às 17h, não sai para almoçar, come só um lanchinho, e a grande refeição do dia é jantar com a família às 19h. É trabalho puxado das 9h às 17h.”
Brasileira se sentia culpada por não trabalhar além do horário
Ana Camargo chegou à Finlândia decidida a separar a vida pessoal da profissional. O que ela não imaginava era que a adaptação à nova cultura de trabalho não seria imediata. “Eu me sentia culpada por não estar trabalhando para além do meu horário”, relembra.
O novo estilo de vida de Ana Camargo
A virada de chave aconteceu quando o dono da empresa chamou atenção por ela ter ficado cinco horas além do expediente para a entrega de um projeto. “Fui forçada a entender que a vida era mais que trabalho”, relata.
Aos poucos, a designer de games compreendeu que não seria punida por um atraso na entrega. A filosofia de saúde mental deu espaço para novos hobbies, inclusive, esportes de aventura. “Aqui eles dizem que se você não está bem mentalmente não vai ser um bom trabalhador.”
“Por mais que pareça algo bobo, às vezes penso se não deveria estar produzindo, ganhando dinheiro, mas no fim estou produzindo o meu descanso”, diz aliviada.
Em São Paulo, Ana tinha um salário aproximado de R$ 13 mil. Na Finlândia, ganha 4.500 euros (R$ 24 mil) brutos por mês. A atual remuneração, segundo a profissional, rende mais porque as despesas básicas, como aluguel, são mais baixas.
Menos horas trabalhadas após burnout no Brasil
No caso da relações-públicas Bianca Alves, 26, que também vive na Finlândia, o ganho hoje é quase três vezes maior se comparado à remuneração que recebia no Brasil (ela não revela os valores).
O maior impacto foi na rotina de trabalho. Há três anos, enquanto atuava em um banco multinacional na capital paulista, recebeu o diagnóstico de burnout.
Após o episódio, a jovem uniu a vontade de morar na Europa ao desejo de ter uma vida mais desacelerada. Alemanha e Portugal eram opções, mas a escolha foi a Finlândia.
No país, Bianca também se deparou com uma forma de trabalho que contrastava com seu cotidiano. “Achava que não fazia o suficiente”, diz.
Em Helsinque, capital finlandesa, Bianca atua na área de gestão de mercados de uma empresa global de cibersegurança e é responsável por todos os clientes da América Latina.
A rotina de trabalho dela inclui até um cochilo no meio do escritório, onde há cápsula individual para descanso.
Fazer hora extra é mal visto
“Aqui, se você faz hora extra, é visto como um péssimo funcionário porque não está dando conta do trabalho dentro do horário para o qual foi contratado.”
Levou um tempo para se ambientar à nova realidade, que se diferencia não só na jornada reduzida e flexibilidade, como também no nível de confiança depositado nos funcionários.
“Bateu 16h é como se passasse um trem dentro da empresa, todo mundo desaparece. Às vezes, eu dou um pulo na praia às 18h. Então, ainda tem muita vida depois do trabalho”, conta.
Evolução mais lenta na carreira
Mas isso não significa que o trabalho no país mais feliz do mundo seja um mar de rosas. A gestora reconhece que a evolução da carreira na Finlândia é mais lenta, levando em consideração o tamanho da população e o mercado pequeno e pouco competitivo. Outro aspecto é a diferença salarial entre cargos, que é consideravelmente menor que no Brasil.
Apesar desse contraponto, Bianca descarta qualquer possibilidade de retornar definitivamente ao país natal. “Não voltaria nem pelo melhor emprego no Brasil. Essa cultura ‘workaholic’ de sempre fazer mais é algo com o qual não consigo lidar”, afirma.
Satisfação de estar no trabalho
O artista sênior de jogos 3D Igor Campos, 42, é outro brasileiro que se mudou para a Finlândia por volta de 2021 em busca de melhores condições de trabalho e não se arrependeu. Esse não é seu primeiro emprego estrangeiro.
No Brasil, morava em Recife e trabalhava remotamente para uma empresa da Singapura, mas não se adaptou por causa do fuso horário.
“Eu tinha que acordar de madrugada para trabalhar, e o tempo para dormir era muito limitado. Foi quando pensei em arrumar algo para morar fora”, relembra.
A escolha do país nórdico não foi por acaso, o artista tinha conhecimento do mercado de games e da cultura de bem-estar no trabalho. “Aqui eles querem saber como você está e te mantêm satisfeito de estar ali”, relata.
Por exemplo, Campos tem acesso direto ao CEO da empresa de games em que trabalha, com 110 funcionários. “Todo mundo pode conversar como se fossem da mesma hierarquia, você sente que todos fazem parte do mesmo time”, diz.
“Também existe uma maturidade em relação aos negócios, o trabalho é bem flexível, dá para você sair mais cedo para fazer algo de que goste.” Em termos financeiros, o que recebe e o que gasta está mais equilibrado. Agora, ganha 45% a mais do que no Brasil (ele não revelou valores).
“O pessoal da empresa depois me contou que eles estavam com dificuldade de encontrar candidatos qualificados na Finlândia.”
Enquanto Finlândia ganha, Brasil perde mão de obra qualificada
Cerca de 2.466 brasileiros moram legalmente no país nórdico, segundo dados mais recentes do Serviço Estatístico da Finlândia. Embora não exista uma pesquisa que mapeie com precisão o cargo que ocupam, há um consenso no mercado de que os profissionais das áreas de TI e setores adjacentes sejam os mais procurados. Quem afirma é Maria José Tonelli, da FGV.
“Hoje, o mercado não é local, é global. Então, brasileiros com boas qualificações têm competência para estar nesse mercado de trabalho. Não precisam ficar restritos ao Brasil, podem nadar em qualquer lago”, diz.
Tonelli avalia que o comportamento das empresas brasileiras tem responsabilidade na perda de talentos. “O grande problema nas empresas é contratar pelo ‘hard’ e demitir pelo ‘soft’. Porque não sabem lidar com humanos e fazer uma equipe trabalhar bem. Ninguém motiva ninguém, mas desmotivar é muito fácil.”
Áreas que têm vagas para brasileiros no exterior
Na avaliação da professora, os profissionais da área de tecnologia não são os únicos a despertarem interesse do mercado finlandês. Trabalhadores do setor da ciência e da educação, além de pilotos e executivos brasileiros, também estão mais propensos a receber propostas de emprego e a concorrer a cargos estrangeiros.
Se por um lado trabalhadores qualificados ganham mais opções na hora de pleitear um emprego, por outro, o Brasil corre o risco de perder talentos de diversas áreas.
“É preciso que as organizações preparem e mudem os estilos de liderança e façam uma mudança de mentalidade”, diz a professora, acrescentando que as organizações não podem mais perder tempo.
“Você tem uma geração que chega e não quer mais isso (modelos organizacionais exaustivos). Então, as empresas têm que se adaptar.”