História por Redação Itatiaia 

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), uma das principais responsáveis por tornar a agricultura brasileira uma potência mundial, passa por um processo de refundação aos seus 50 anos.

Um grupo de trabalho criado pelo Ministério da Agricultura e formado por alguns dos maiores especialistas em pesquisa agropecuária do país apontou, em uma primeira versão do relatório, que a Embrapa:

  • é burocrática,
  • tem uma gestão excessivamente centralizada em sua sede em Brasília
  • e carece de uma política de recursos humanos eficiente.

O documento do grupo de trabalho, obtido em primeira mão pela CNN, diz, por exemplo, que foi constatada “a existência de um excesso de concentração de poder na sede (…) que reduzem a criatividade das unidades e da empresa em geral”.

Também diz que:

  • é preciso “rever os processos decisórios (…) para melhorar a gestão e atendimento aos órgãos de fiscalização e controle, eliminando a burocracia, o retrabalho e a dedicação excessiva de empregados”,
  • é necessário “conceber um novo sistema de avaliação de desempenho” e que “a evolução na carreira deve valorizar a atividade de pesquisa”.

“Burocratizou”

Um dos integrantes do grupo de trabalho é Pedro Camargo Neto, ex-presidente da Sociedade Rural Brasileira e ex-secretário de Produção e Comércio do Ministério da Agricultura durante o governo FHC.

À CNN, Pedro Camargo Neto lembra que a Embrapa conta com 2 mil pesquisadores, 8 mil funcionários e 42 centros além da sede.

“Com o passar dos anos, a sede (em Brasília) começou a criar muitos controles e isso burocratizou de uma tal maneira que o pesquisador não consegue produzir”, complementa.

Para Camargo Neto, “o problema é que tem que responder muitos relatórios, se perde muito esforço nesse processo e a pesquisa exige criação e não pode ser burocratizada”.

Por ser uma empresa muito grande, estruturada e burocratizada, Camargo Neto defende que a Embrapa precisa ser “sacudida, receber uma orientação e modernização”. “Para que os novos presidentes e diretores (da Embrapa) sigam essas orientações, para que promova as mudanças”, complementou.

O ex-secretário de Produção e Comércio do Ministério da Agricultura também aponta que, ao longo de seus 50 anos, a Embrapa produziu muito, teve quase R$ 4 bilhões investidos, mas, nos últimos anos, “deixou a desejar”. “Perguntamos para cerca de 20 pesquisadores e houve convergência, eles disseram que há burocracia demais, que os pesquisadores estavam com dificuldades (por conta das burocracias), que limitava eles por Brasília”.

Um dos pesquisadores consultados foi Zander Navarro, professor do programa de pós-graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O documento que Zander Navarro entregou ao grupo de trabalho com as respostas ao questionário foi intitulado por ele de “O Brasil precisa de outra Embrapa”.

Ele vai direto ao ponto: afirma que é preciso “aceitar, como inequívoco e sem tergiversações, a situação de crise ora experimentada pela Embrapa – ainda que latente e sem visibilidade pública”.

O professor diz ainda que “são numerosos os aspectos, processos, tendências, atividades e o mau funcionamento de estruturas internas que poderiam ser citados para indicar, sem nenhuma dúvida, a sua influência deletéria no cotidiano da estatal”.

A Embrapa, “há um bom tempo”, tem sido incapaz de definir a sua estratégia institucional, segundo o especialista.

A estatal não é capaz de afirmar publicamente quais seriam as suas diretrizes de pesquisa (justificando-as) (…) a estrutura e distribuição espacial das unidades é totalmente obsoleta (…), há um aspecto quase totalmente desconhecido pela sociedade externa à Embrapa, embora crucial para explicar os seus impasses atuais que refere-se à substituição de dois terços dos pesquisadores em período aproximado de quinze anos

Zander Navarro

O peso da folha de pagamentos

Também diz que a Embrapa gasta quase todo o seu orçamento com o pagamento de salários — pelo menos 90% do total.

E, como resultado, “considerados os demais gastos correntes, praticamente não existem fundos para o desenvolvimento de sua missão principal – realizar pesquisas (…) a estatal se tornou fortemente disfuncional e nitidamente periférica em relação à economia agropecuária brasileira”.

Empresa não lidera pesquisa agronômica no Brasil

Dados levantados pela professora da Unb Connie McManus apontam que de fato a Embrapa não é a líder em pesquisa agronômica no Brasil.

Irlandesa naturalizada brasileira com mestrado em Oxford e pós-doutorado em Sydney, ela é ex-diretora de Relações Internacionais da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), principal órgão de pesquisa do país.

De acordo com Connie McManus, no conjunto das instituições que fazem pesquisa no Brasil, a USP e a Unesp publicam mais artigos na área de agropecuária.

Outras instituições também mostram maior número de publicações em áreas específicas, como a Unicamp e UFSC na área de biotecnologia na agricultura.

Algumas destas instituições como USP, Ufrgs, UFPE, UFRJ e Unicamp, além de outras, mostram maior impacto que a Embrapa.

Cientistas sem destaque internacional

Ela também afirma que a Embrapa tem alguns excelentes cientistas, mas poucos se destacam nacionalmente ou internacionalmente.

E que a empresa tem:

  • seis dos 103 cientistas na lista dos Best Animal Science and Veterinary Scientists in Brazil (research.com),
  • um em 95, na área de Best Ecology and Evolution Scientists in Brazil,
  • oito no Best Plant Science and Agronomy Scientists in Brazil (em 56)
  • e três em ciências ambientais.

“Em termos de publicações da Embrapa, 70% são em colaborações nacionais e 26,6% em colaboração internacional, portanto somente 3,4% são da Embrapa sozinha”.

E complementa: “O impacto geral da Embrapa é de 0,87 (média mundial é um), sendo 0,79 na área de ciências da agricultura (Scopus do Elsevier.com)”.

Outro dado levantado por Connie McManus é o número de cultivares — os melhoramentos genéticos patenteados elaborados por pesquisadores públicos e privados para que as culturas agrícolas enfrentam, por exemplo, uma estiagem.

A professora reforça que o Brasil possui 2.714 cultivares protegidos e mais de 90% das cultivares foram registrados por empresas privadas.

A Embrapa tem algumas áreas na qual ela é dona do conhecimento como a questão dos recursos genéticos, onde exerce um papel fundamental para o Brasil. Na questão de quarentena do material genético, é ela que centraliza essas ações, e também de marcação territorial e ações de ordem nacional

Connie McManus

Mas pondera que, termos da pesquisa agropecuária dentro do Brasil, “tem outras áreas que a Embrapa é colocada como detentora do conhecimento, mas a maior parte do que produzem como pesquisa, cerca de 96% do que é produzido é feito em colaboração, e desse valor, 70% é feito em colaboração com universidades brasileiras, e, às vezes, essa colaboração não é reconhecida”.

Ela classifica que, em áreas estratégicas, a Embrapa é “fundamental”.

VÍDEO – Stédile diz que invasão de área da Embrapa foi “erro”

Connie McManus cita um levantamento feito por ela em 2021, que revela que a Embrapa era responsável por apenas por 4% dos cultivares do Brasil, e a maior parte, é de empresas privadas.

“Obviamente a Embrapa pode estar desenvolvendo algum produto que não dependa de alta produtividade ou algo específico, mas, isto está sendo desenvolvido com universidades. Então, tem áreas que a Embrapa poderia ser mais estratégica, olhando para o futuro”, complementa.

“Há pesquisas de produtos que já são patenteados no exterior, então, para que repetir patentes, ao invés de desenvolver novos produtos como bioinsumos?”, questiona.

Para ela, isso poderia ser uma área estratégica, “pois, se olhar a guerra da Ucrânia, ela prejudicou o envio de materiais, então essa é uma área que poderia ter mais esforço ao invés de repetir patentes já existentes”.

“Então seria bom colocar na empresa algo que outros países não estão criando, e que o Brasil precisa ao invés de repetir estudos que já existem”, conclui.

“Perdemos tempo com formulários”

A pesquisadora da Embrapa Hortaliças desde 1997, Alice Nagata avalia que o excesso de procedimentos burocráticos na Embrapa prejudica a produção da estatal em pesquisa agrícola.

“Nós temos sofrido com esse problema, que é o excesso de burocracias aqui dentro. Então nós perdemos muito tempo em preencher formulários e isso tem diminuído nosso tempo de pesquisa em todas as áreas, e dificulta firmar novas parcerias. Até isso que seria externo, acaba sendo dificultado e atrasa o processo”, afirma Alice.

Alice defende que a Embrapa coloque a pesquisa como algo prioritário, “pois, hoje, o que vimos que é prioridade é a governança e gestão da pesquisa”.

“Ter mais profissionalismo deixaria que o pesquisador realizasse seu trabalho profissionalmente. E não que o pesquisador tenha que sair da sua área e realizar outros trabalhos. Acho que falta profissionalismo em algumas etapas, como feedback e contratação”.

A especialista defende com ênfase a descentralização de decisões em Brasília.

“O mais importante é investir em estratégias, decidir o que a Embrapa precisa fazer, como fazer e qual forma fazer a pesquisa, nós achamos que falta essa análise, de como a Embrapa pode entregar mais resultados para a sociedade”, complementa.

As queixas de Alice são referendadas por outros pesquisadores com quem a CNN conversou e que levaram um grupo de servidores da empresa a encaminhar, sete anos atrás, um documento para a cúpula da empresa reivindicando mudanças na gestão da Embrapa.

Eles elaboraram uma lista de tópicos considerados como problemáticos por funcionários da Embrapa e de medidas sugeridas para solucioná-los, que merecem ser consideradas pela Diretoria Executiva, com pontos semelhantes aos que foram apontados pelo grupo de trabalho atual.

Os pesquisadores falaram, em 2016, por exemplo, que “é necessário reduzir drasticamente a burocracia em todos os processos da empresa”.

Mencionaram a necessidade de “descentralização e autonomia”, de “simplificar o conteúdo descritivo dos projetos nos formulários eletrônicos internos” e melhorar “gestão de pessoas”.

Os desafios internos da Embrapa não impediram a estatal de continuar dando bons frutos ao país.

Dentre as conquistas recentes que a empresa considera relevantes, estão:

  • O lançamento de novos bioinsumos, que reduzem a aplicação de químicos nas lavouras;
  • O desenvolvimento de variedades resistentes a novos biomas como o trigo e o dendê no cerrado e frutas de clima temperado no semiárido brasileiro;
  • O avanço na agricultura digital que ajuda a detectar doenças em plantas e a desenvolver drones que identificam pragas e pulverizam a lavoura automaticamente e
  • A Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF), uma estratégia de produção sustentável, que integra atividades agrícolas, pecuárias e florestais.

Papel essencial da Embrapa

Para o professor Francisco Vidal Luna, autor do recente livro “Alimentando o Mundo: o Surgimento da Moderna Economia Agrícola no Brasil”, a Embrapa teve papel essencial no desenvolvimento da agricultura brasileira.

Ele explica que até a década de 1960, o Brasil produzia essencialmente para o mercado interno.

“O Brasil era monocultor de café, voltado muito ao café, para exportar. Tirando o café, vivia apenas com seu próprio abastecimento. Na década de 60 houve modernizações no setor agrícola, como política de crédito farto e subsidiário”, detalha.

“O trigo era muito protegido, não era competitivo. E era necessário gerar produtos básicos e insumos básicos pro Brasil. Por isso, a modernização foi muito rápida e foi criada a Embrapa. Boa parte das políticas de crédito foram incorporadas, mas se perdendo como instrumento. O que foi permanente foi a Embrapa, que tem 50 anos e é chave para a modernização. A abertura do Centro-Oeste foi essencial para a produtividade do Brasil aumentar”, afirma Luna à CNN.

O professor Francisco Vidal Luna afirma que o processo que originou a Embrapa foi bem sucedido.

“A pesquisa antes era feita pelo instituto agronômico de Campinas por universidades, mas não sabia fazer o que a Embrapa fez, que foi aumentar a produtividade do campo”, disse. “Dentro de um instituto de física, por exemplo, tem muitas áreas de pesquisa e faz com que não chegue ao consumidor do conhecimento. Já a unidade da Embrapa tem diversas áreas e todos eles preocupados com algo específico, por exemplo o milho ou as unidades dos produtos da região”, complementou.

VÍDEO – Embrapa fez revolução tecnológica nunca vista antes

O especialista lembra ainda que, nos anos 1970, foi criada uma Universidade da Embrapa.

“Os EUA financiaram os pesquisadores brasileiros a irem para fora, e foi a época da revolução verde. A Embrapa absorveu isso, trouxeram o conhecimento e compartilharam isso. E a Embrapa foi essencial para abrir o Centro-Oeste, que na época plantava arroz, e era muito demorado. Com o tempo, a Embrapa foi otimizando isso. Hoje, o Centro-Oeste é o celeiro do mundo.”

A presidente da Embrapa Silvia Massruhá reconhece a necessidade de mudanças, mas não gosta do termo refundação, prefere falar em revitalização.

Primeira mulher a chefiar a Embrapa, ela integra o quadro de pesquisadores da Embrapa desde 1989. É doutora em computação aplicada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (inpe). Ela não concorda com o termo “refundação”.

“Refundar é muito forte (…) estamos no momento de revitalizar essa pesquisa e para isso a gente vem discutindo e com algumas lideranças do agronegócio como pode revitalizar para que ela seja mais ágil e ajudar a agropecuária brasileira se mantendo no protagonismo (…)”, disse à CNN.

Sobre os resultados do GT, ela diz: “Eles apontaram três pontos a embrapa por ser empresa pública ela está dentro da lei das estatais tem um conjunto de normas que tem que seguir desde 2016 ao mesmo tempo que é positivo porque blinda a empresa enquanto empresa pública, tem alguns pontos que precisam ser melhorados para ela ser mais ágil existe essa discussão”.

Silvia Massruhá defende a necessidade de descentralizar a gestão.

Dados oferecidos pela própria Embrapa à CNN mostram que o orçamento da Embrapa é majoritariamente concentrado em salários e que há pouco recurso para pesquisa.

Os números da empresa – Orçamento para 2023

  • R$ 3,6 bi dos quais R$ 3,2 bi para salários (90%) e R$ 333,2 mi (8%) para pesquisa agropecuária.
  • Captação externa de recursos para pesquisa em 2022 foi de R$ 93,3 milhões.
  • Captação externa para projetos em parceria com setor produtivo em 2022 foi de R$ 17,7 mi.

Apesar dos desafios, a presidente da estatal considera que a Embrapa foi e é essencial para o papel que a agricultura brasileira tem hoje no mundo.

“A Embrapa há 25 anos faz o balanço social. Em 2022, para cada real investido, ela retornou R$ 34 para a sociedade. Isso mostra o quanto nossas tecnologias estão sendo adotadas pela sociedade”, resumo.

E chama atenção para outro ponto: estudo da Agência Brasileira de Marketing Rural com mais de 4 mil pessoas na área urbana traz a Embrapa em sexto lugar.

“Nossa agricultura é baseada em ciência e tecnologia. A Embrapa foi criada com a missão de criar segurança alimentar e, com evolução, passamos a grandes exportadores e produtores”, explica.

“Hoje existem outras demandas que chegam que a Embrapa tem que se adaptar. Estamos passando por esse momento de transição onde o consumidor é mais exigente e tem acesso à informação. Isso é um outro desafio: a transição nutricional, transição energética, matriz limpa, descarbonização, como aumentar produção e produtividade com pouca expansão de área”, conclui.

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By valeon