Armação, como lembra o ministro, cujo ponto de partida é sempre um laço velado de amizade, compadrio ou parentesco

Por Roberto DaMatta – Jornal Estadão

Quando o tio de um amigo foi eleito rei do país, ele foi – como reza a boa norma do nepotismo brasileiro – à sua casa parabenizá-lo. No centro da sala, o sobrinho, para espanto do meu amigo, disse aquilo que muitos pensavam, mas não ousavam mencionar: “Titio se arrumou”.

Dentro de um silêncio gritante, meu amigo cogitou: todo mundo deve estar pensando a mesma coisa, uma possível “arrumação” pessoal. Um cargo com privilégios para “o resto da vida”, o que sociologicamente corresponde a virar aristocrata. É quando se passa a pertencer ao tal “estamento” de Raymundo Faoro. A casta sustentada por um sistema político formalista, que governa para si mesma, mas, paradoxalmente, é eleita pelo “povo”.

Deus ajude a dar um “jeitinho”, como diria minha colega Lívia Barbosa, nessa pantagruélica e inexequível maçada Toffoli. Testemunho vivo das onipotências monocráticas do STF.
Deus ajude a dar um “jeitinho”, como diria minha colega Lívia Barbosa, nessa pantagruélica e inexequível maçada Toffoli. Testemunho vivo das onipotências monocráticas do STF. Foto: Wilton Junior/Estadão

Mas isso foi no século passado, quando as “vacas iam para o brejo”. Hoje – por causa da impossibilidade legal (e irracional) de construir barreiras –, elas estão nos telhados. Navegam em Dias Toffoli, pesando sobre nossas cabeças. Crânios que não têm escola para entender como um magistrado supremo ousa afrontar o mais chulo senso comum, apagando a história do maior esquema de corrupção-arrumação jamais revelado no Brasil.

Se há uma patologia que persiste a ponto de estruturar o espaço público nacional, essa é a corrupção. Armação, como lembra o ministro, cujo ponto de partida é sempre um laço velado de amizade, compadrio ou parentesco.

São essas as relações pessoais com quem ocupa hoje o cargo de presidente que motivaram os absurdos do despacho. Um pedido de perdão a Lula, cujo exagero apenas mostra a enorme força dos elos pessoais no Brasil. É, pois, com a coragem que sustenta as relações pessoais que o ministro tenta recuperar o afastamento do amigo, revelando até onde pode chegar o peso das amizades no Brasil. Esses laços sem os quais – e Lula sabe bem disso – não se governa e não se dorme em paz.

Tenho analisado o peso e a força desses laços de “conhecimento”, “intimidade” e “consideração” que operam como equações de uma sócio-lógica a ser a ser ponderada. Não custa lembrar delas:

Tenho coragem indômita para tudo, menos para negar o pedido de um amigo. Aos amigos tudo, aos inimigos, a lei – corolário; se um amigo usa a lei contra mim, me tratando igualitariamente, vira inimigo. Inimigo de amigo é inimigo. O consagrado samba de Beth Carvalho reitera esse “teorema da amizade”, quando reclama muito justamente das reciprocidades contidas nos laços e “conhecimentos” brasileiros. Entre “amigos de fé”, há a obrigação de “dar de volta”. É o dever do pagamento e do troco exigido pela “ética de condescendência” dos elos pessoais. Como adverte o samba: “Você pagou com traição / A quem sempre lhe deu a mão…”.

Deus ajude a dar um “jeitinho”, como diria minha colega Lívia Barbosa, nessa pantagruélica e inexequível maçada Toffoli. Testemunho vivo das onipotências monocráticas do STF.

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