História por Notas & Informações • Jornal Estadão
A aprovação pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados de um projeto de lei (PL) que proíbe o casamento homoafetivo suscitou grande – e natural – indignação. Para piorar, foi uma vitória folgada: 12 votos contra 5. Ainda há dúvidas sobre a viabilidade da proposta. Tudo indica que, mais do que uma lei com esse teor, o objetivo é gerar barulho e engajamento nas redes sociais. É possível, portanto, que o projeto seja apenas mais uma das disfuncionalidades da política contemporânea. Em vez de enfrentar problemas reais, ela é usada para suscitar divisões na sociedade.
No entanto, mesmo que não seja aprovado no plenário da Câmara, o projeto de lei proibindo o casamento homoafetivo é representativo de uma mentalidade que vem se tornando habitual em diversos grupos ideologicamente motivados. Trata-se da pretensão de usar o Estado – por meio do Legislativo ou do Judiciário – para impor à coletividade ideias e convicções pessoais sobre a vida, o mundo e a sociedade.
Nesse anseio, observa-se uma grande confusão sobre o Estado e a própria democracia. As eleições e o sistema representativo não são mecanismos para que as concepções morais, religiosas ou culturais da maioria da população sejam impostas a toda a sociedade. Da mesma forma, o controle de constitucionalidade do Supremo Tribunal Federal (STF) não é um mecanismo para que as concepções morais, religiosas ou culturais de uma maioria sejam impostas a toda a sociedade.
Tudo isso parece óbvio em um Estado Democrático de Direito, que não vem ditar como as pessoas devem viver ou como devem educar seus filhos, por exemplo. O Estado não é um fiscal da moral e dos bons costumes, tampouco uma espécie de grande guia sobre o bem e a virtude. Seu dever é prover um ethos de paz e de liberdade. E é daí que decorre a legitimidade do Estado para determinar alguns limites aplicáveis a todos os cidadãos. Por exemplo, os limites da lei penal.
Parece haver, no entanto, grupos políticos completamente indiferentes ao âmbito próprio de atuação do Estado. Cada um deseja fazer com que suas ideias pessoais sejam encampadas pelo poder público. Isso é nítido na pretensão de proibir o casamento homoafetivo. Convictos de que a relação matrimonial deve se dar entre um homem e uma mulher, determinados grupos sociais querem que a lei estabeleça uma espécie de monopólio de sua específica concepção de casamento para toda a população. Trata-se de uma interferência da esfera privada sobre o âmbito público, como meio de interferir na esfera privada dos demais cidadãos.
Nos casos de motivação ou influência religiosa, essa tentativa de interferência é facilmente identificada e denunciada, uma vez que ela viola abertamente o caráter laico do Estado, que deve atuar por razões públicas, e não por argumentos religiosos. No entanto, a laicidade do poder estatal pode também ser desrespeitada por interferências baseadas em concepções culturais ou filosóficas não generalizáveis a toda a população. Por exemplo, o STF não pode basear suas decisões em determinada ideia de moral, seja ela religiosa ou ateia.
Eis, por assim dizer, o outro lado do problema. Se nos últimos anos grupos religiosos têm tentado usar o Congresso para impor suas concepções de mundo a todos os demais, um fenômeno similar, apenas com sinais trocados, é visto no Judiciário, com grupos progressistas tentando impor suas pautas, isto é, sua visão de mundo, a toda a população, por meio de decisões do STF. Dois exemplos recentes: a ação pedindo que a Corte determine quando começa a vida apta a ser protegida pela lei penal e a ação postulando um novo marco legal para as drogas.
A pauta de costumes não está apenas no Legislativo. Também o Judiciário é chamado cada vez mais para se pronunciar sobre costumes, para dizer o que é certo e virtuoso. Tanto um caso como o outro são incompatíveis com a liberdade própria de um Estado Democrático de Direito, que deve respeitar os âmbitos social e individual.