O silêncio do banqueiro José Safra
Sonia Racy
Joseph e Vicky Safra. Foto: Sonia Racy/Estadão
Joseph Safra ocupava privilegiado lugar na tradicional lista dos bilionários globais da revista Forbes. Entretanto, na lista dos que não aparecem em público e muito menos concedem entrevistas, o banqueiro conquistou, talvez…o primeiríssimo posto. Consequência deste silêncio, a fortuna da família Safra acabou alimentando lendas. Muito se fala sobre seus negócios, mas nada sai da boca dos próprios. Foi com muita determinação que consegui convencer “seu José” – como ele era chamado por todos no trabalho, bem como pelos amigos – a me conceder duas entrevistas gravadas, depois de anos e anos de conversas em off (jargão usado pelo jornalismo, quando a fonte da informação não pode ser revelada). Uma foi feita em 2000 e outra em 2010. O “calado” patriarca, casado com a sempre presente Vicky por 50 anos, pai de quatro filhos e 14 netos, nunca gostou mesmo é…de falar. Sempre foi homem de poucas e decisivas palavras.
A primeira entrevista bateu meu recorde de tempo corrido: foram mais de cinco horas de gravação de uma vez só. Um processo de negociação – pergunta por pergunta – sobre o banco, perspectivas e mundo. Na segunda entrevista, o timing melhorou um pouco. Foram só…quatro horas. O mercado financeiro internacional se afogava na crise dos subprimes, depois da quebra da Lehman Brothers, e o mundo buscava saídas urgentes. Descobri, logo de cara, que a tarefa não seria muito mais fácil comparada à primeira entrevista. Perguntei: Para onde vai essa crise? A resposta: “Vai se resolver”. “Só isso, seu José? Tenho disponível uma página de jornal inteira!” O banqueiro me respondeu: “Que mais quer que eu diga?” Os leitores podem imaginar como se deu a longa e custosa conversa.
Minha relação com o banqueiro vem de anos de bate-papos informais, que aos poucos foram se solidificando em confiança mútua. As primeiras conversas começaram em março de 1995, quando o Brasil resolveu flexibilizar o sistema de câmbio fixo. Persio Arida, presidente do BC, queria abrir a banda cambial, até então fixa. Seu diretor no BC, Gustavo Franco, não. O então ministro da Fazenda Pedro Malan se absteve diante das opções dos seus economistas formuladores do Plano Real. Sobrou para o presidente Fernando Henrique Cardoso, que, salomonicamente, optou por fórmula que acabou questionada pelo mercado. Tão questionada que, no dia do anúncio da mudança, o BC perdeu US$ 8 bilhões em reservas em 24 horas.
Fui informada de que o Banco Safra havia agido rapidamente para se proteger e trocado milhões de reais por dólares. Na busca de confirmação para essas operações cambiais, procurei o banco que…sequer tinha uma assessoria de comunicação. Total insucesso. Pouco tempo depois, me disseram que seu José iria me receber. Algo inimaginável para qualquer jornalista com um mínimo de informação sobre os Safra. Data marcada, cheguei ao prédio, na esquina da Av. Paulista com Rua Augusta, bastante ansiosa. E, ao aterrissar no 24.º andar, me deparei com uma sala imensa, cercada de objetos de arte do mundo inteiro decorando o ambiente. Entretanto, cá entre nós, o que me chamou mesmo a atenção foi uma belíssima série de gravuras do Vaticano, de Rafael. “Sou judeu religioso, mas aceito todas as religiões”, justificou o banqueiro.
Conheci ali um senhor educadíssimo, cerimonioso, de fala mansa e tom ameno. Muito diferente do que esperava, ante as descrições que circulavam pelo mercado financeiro. Essas davam conta do discreto banqueiro como muito “agressivo”. Ouvi ali sua história sobre as operações cambiais, prometendo não identificar a fonte de informação. Redigi nota na coluna Direto da Fonte, publicada no Estadão (onde estou até hoje). E, a partir de então, comecei a apreender que seu José não mentia. Podia até omitir. Mas me tirar da pista da notícia, nunca.
Certa vez ele me ligou para me perguntar sobre o que eu estava achando do comportamento do mercado de câmbio. Perplexa, não sabia o que dizer ao maior conhecedor do mercado de câmbio mundial. Depois, pesquisei, discretamente, com alguns interlocutores, sobre essa sua atitude. Fui informada de que o banqueiro costumava buscar opinião até…do ascensorista do banco, quando achava que desta troca aprenderia algo novo. Trata-se de atitude muito diferente em um ambiente onde o sucesso é termômetro para certezas contundentes. Percebi que, a partir desta ronda de pesquisas incomuns, o banqueiro tirava suas deduções se antecipando aos mercados sequencialmente. O dinheiro, cheguei à conclusão observando seu José, está nos… detalhes.
Passei a frequentar jantares na casa de Vicky e seu José, no Morumbi. Ele me permitia trabalhar conversando e me apresentando à metade do PIB presente, integrantes do governo das várias esferas – federal, estadual e municipal. E, assim, saía do evento com muita informação nova. A contrapartida: jamais mencionar a festa. No ano passado, entretanto, ele me liberou para clicar, em maio, em NY, o tradicional jantar fechado do banco que historicamente antecede a premiação do Person of the Year. Fotos feitas, montei a página da coluna – não, ele não permitiu fotógrafo profissional entrar – e publiquei, entre outras, foto da sua última aparição pública (ver ao lado).
A chance de participar desses eventos oferecidos pelo banqueiro me abriu portas. Empresários, políticos e outros integrantes do mercado financeiro, ao me verem circulando, se assustavam. A ojeriza que os Safra têm da imprensa é internacionalmente conhecida. Dia seguinte, esses mesmos convidados, ao se depararem com a coluna do Estadão, percebiam que o que eu dizia, “estou aqui em off”, era realidade. A confiança que seu José depositou em mim passou a ser quase uma… credencial. Cabe registrar aqui que a iniciativa privada não é obrigada, como são políticos, artistas e outros, a conversar ou conviver com jornalistas. Ela pode se expressar, se for esta sua opção, exclusivamente por meio de comunicados. Como fazem sempre os Safras.
O filho de Jacob Safra – também banqueiro, nascido em Alepo e sediado em Beirute antes da Segunda Guerra Mundial – diferentemente da maior parte dos tycoons que já passaram por este mundo, nunca analisou sua trajetória como algo que merecesse registro. Não se ouvia da boca do banqueiro palavras como “eu fiz”, “eu ganhei”, “eu “sou”. Ele dizia sim, como me repetiu diversas vezes, que “sempre quis ser como meu pai”.
Engana-se quem acha que seu José – obsessivo, trabalhador e perfeccionista – dedicou sua vida somente a “suar a camisa” para fazer seu banco crescer. Como pai, fazia questão de estar em casa sempre que podia. Chegava por volta das 20 horas, para jantar com todos da família. Este era outro foco perceptível do banqueiro, além do banco. Certa vez, só para dar um exemplo, chegou a esperar acordado um dos seu filhos tarde da noite. Brigou com ele? Não, mas advertiu: “Filho, é perigoso lá fora”.
A ideia fixa na segurança da família é parte dos empresários do mundo de hoje, mas é preocupação antiga dos Safras. E ela se tornou um pedaço do forte controle que o banqueiro tentava exercer sobre tudo que lhe dizia respeito direta ou indiretamente.
Vale registrar que seu José, na ocasião da doença que acometeu Jacob pai, pediu licença da presidência do Safra e dormiu quatro meses no hospital Einstein, onde seu Jacob estava internado, mantendo-se à cabeceira até a despedida final. Não cabem aqui todos os outros exemplos de pessoas doentes que foram acompanhadas pelo banqueiro. Não só com dinheiro, mas também com telefonemas e presença física. Tampouco cabem aqui seus surdos e contínuos atos beneficentes pelo Brasil e mundo afora.
Certa vez, perguntei a que ele atribuía seu sucesso. “É só não emprestar dinheiro para todo mundo que te pede…” Que mais seu José?
Silêncio…