História de FLÁVIO FERREIRA E ARTUR RODRIGUES – Folha de S. Paulo
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Políticos escolhem a dedo as empresas que vão receber o dinheiro de suas emendas parlamentares no momento de indicar à estatal Codevasf, controlada pelo centrão, a destinação de máquinas, equipamentos ou serviços, o que revela risco de favorecimento a fornecedoras.
O apontamento chega a ocorrer com menção direta às empresas, conforme ofícios encaminhados à Codevasf e identificados pela Folha. Em outros casos, é indireta, quando o congressista aponta uma espécie de “contrato guarda-chuva” assinado com as fornecedoras.
Na estatal os políticos podem saber de antemão quais serão as empresas que fornecerão os produtos ou serviços, uma vez que suas escolhas ocorrem dentro dos contratos “guarda-chuva” em vigor no órgão. A empresa diz seguir a lei.
A Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) foi criada para promover projetos de irrigação no semiárido, mas foi transformada em uma espécie de loja para os políticos no governo Jair Bolsonaro (PL), sendo mantida assim na gestão Lula (PT).
Especialistas dizem que o fato de os políticos terem como saber quais serão as empresas que fornecerão os produtos ou serviços configura indício de ilegalidade e pode violar o princípio da impessoalidade na administração pública.
Na prática, os deputados e senadores usam a estatal como se tivessem um “cartão pré-pago” para movimentar dinheiro público e direcionar doações e serviços para seus redutos eleitorais sem qualquer critério técnico.
Os políticos colocam as verbas na Codevasf e depois vão usando os recursos aos poucos, até que o valor de suas emendas parlamentares se esgote em cada ano.
Essas situações foram identificadas pela Folha a partir da análise de mais de 2.000 ofícios encaminhados por deputados e senadores à estatal entre 2018 e 2023, obtidos via LAI (Lei de Acesso à Informação).
As operações feitas pelo ministro das Comunicações, Juscelino Filho, na época em que ele era deputado federal, exemplificam o mecanismo dentro do órgão.
Em ofício de agosto de 2022, ele apontou expressamente à Codevasf os nomes das empresas fornecedoras dos produtos que ele escolheu para entrega em seus redutos eleitorais.
Dois dos itens tiveram como favorecida a Prefeitura de Vitorino Freire (MA), governada pela irmã de Juscelino, Luanna Rezende (União Brasil-MA).
No ofício, o então deputado pediu à Codevasf que usasse “contratos guarda-chuva” assinados com as empresas Fortlev, para destinação de 40 caixas d’água de 500 litros, e pela PH Barros Santana Comércio, para fornecimento de 25 motores de rabeta.
A reportagem também encontrou casos em que os congressistas citam máquinas da empresa chinesa XCMG.
Ofício assinado pelo então deputado Fábio Reis (MDB-SE), relativo a emenda de bancada do Sergipe, por exemplo, relacionou duas retroescavadeiras da XCMG, avaliadas no total de R$ 491 mil.
Em 2022, o também então deputado Osires Damaso (PSD-TO) cita em ofícios cidades beneficiárias de doações de motoniveladoras da marca, também em caso de emenda de bancada.
Tanto Damaso quanto Reis não cumprem mandato atualmente.
Ofícios dos políticos mostram com detalhes como os congressistas manejam as verbas públicas dentro da Codevasf, calculando o saldo em conta.
O deputado federal Félix Mendonça Júnior (PDT-BA) enviou ofício em outubro de 2022 à regional da Codevasf em Juazeiro (BA) para solicitar que o “saldo financeiro resultante das licitações realizadas para o cumprimento da emenda” de sua autoria, de cerca de R$ 30 mil, fosse convertido na aquisição de caixas d’água de 5.000 litros.
No fim do documento, um quadro aponta o saldo final de sua emenda: R$ 454,79.
O hoje ministro Juscelino, em seu tempo de congressista, encaminhou ofício à Codevasf para pedir que uma “sobra” de R$ 72 mil de uma emenda dele fosse somada a um recurso de cerca de R$ 1,8 milhão para a compra de máquinas e equipamentos a serem distribuídos a seus redutos eleitorais.
Na mensagem, Juscelino afirmou que para elaborar o requerimento estava de “posse dos novos valores das atas de registro de preços” da estatal.
Ata de registro de preços é o nome técnico do contrato “guarda-chuva” usado na Codevasf. Nas atas as empresas se comprometem a fechar um preço para o fornecimento de uma determinada quantia de bens ou serviços. Ou seja, ao pedir o uso de uma ata de registro de preço da estatal, o deputado ou senador já sabe qual é a empresa que será favorecida com a indicação de sua emenda parlamentar.
Os princípios da administração pública como impessoalidade, igualdade e moralidade podem estar sendo violados, segundo especialistas.
O professor de direito administrativo da PUC-SP Pedro Estevam Serrano diz que “há fortes indícios de agressão aos princípios da impessoalidade, igualdade e moralidade administrativa”.
De acordo com Adriana Portugal, presidente do Ibraop (Instituto Brasileiro de Auditoria de Obras Públicas), o sistema na Codevasf permite a “algum agente público mal-intencionado sugerir a contratação de uma empresa específica para igualmente obter vantagem indevida na contratação, abrindo-se uma brecha clara para a corrupção”.
Segundo Anderson Medeiros Bonfim, advogado especialista em licitações, o “arranjo de possível contratação futura para objetos licitatórios indeterminados vem sendo utilizado pelo Legislativo para, em determinados casos, estabelecer uma relação pouco republicana com empresas já sabidamente integrantes de determinadas atas de registro de preço. É um jogo de cartas marcadas.”
Para Roberto Lambauer, mestre em direito público pela PUC-SP, “a escolha de uma ata específica, com uma empresa específica, é decisão que extrapola a competência do congressista e favorece a violação dos princípios da administração pública”.
Bruno Brandão, diretor executivo da Transparência Internacional Brasil, afirma que a situação na Codevasf poderá ter reflexo nas eleições municipais deste ano. “Criou-se um ciclo vicioso em que parlamentares, principalmente do Centrão, se fortalecem a cada ciclo eleitoral. Ganham mais votos pelo uso eleitoreiro das emendas e voltam cada vez mais fortes politicamente”, diz.
Estatal diz que compras são lícitas
A Codevasf afirmou que segue a lei e que as atas de registro de preços são públicas. “Nos ofícios, a companhia considera apenas as características e finalidades dos bens indicados. Os itens apresentados para atendimento das demandas parlamentares serão aqueles disponíveis em atas de registro de preços da Codevasf vigentes na unidade da federação em que os beneficiários estiverem localizados”, disse a empresa.
A estatal afirmou ainda que, quando os bens indicados pelos parlamentares consomem valores inferiores aos estimados, o remanescente é utilizado em novas ações. No entanto, a empresa ressaltou que todos os projetos são precedidos de estudos e análises de adequação técnica.
Juscelino Filho disse que as emendas são instrumentos legais e que os ofícios enviados à Codevasf mostram a transparência da relação, não havendo qualquer ilegalidade.
“As atas de registro de preços cumprem ritos determinados pela legislação, que inclui total transparência e ampla participação de qualquer empresa –portanto, não há como alegar direcionamento, visto que as empresas foram contratadas após ampla concorrência.”
Por meio de sua assessoria, o deputado federal Félix Mendonça Júnior afirmou que todas as suas ações relativas às emendas são feitas em conformidade com a lei.
A Folha procurou Osires Damaso e Fábio Reis, mas eles não foram localizados.
A reportagem também entrou em contato com as empresas citadas. A Fortlev afirmou que é uma empresa consolidada no mercado e que que foi regularmente habilitada no processo após concorrer com diversas empresas. Disse ainda que não possui relacionamento com políticos e que é apartidária.
A XCMG não se manifestou, e a reportagem não localizou nenhum responsável pela PH Barros Santana Comércio.