Gentileza, enfim

O mundo de 2020 foi da agressividade, da ‘lacração’ e da comunicação violenta

Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo

Na origem clássica da palavra gentileza, existe o termo que remete a gens, clã, família e origem. Você tem obrigações com seu grupo porque descende de um ancestral em comum. Essa antiga noção é muito maior do que a ideia de família nuclear ou estendida que temos hoje, na qual o que nos une é o sobrenome e a possibilidade de amor. Devo gentilezas inúmeras ao meu grupo familiar. Antes, o código não era de doçura de maneiras, porém de regras e serviços com meu grupo.

Jesus foi uma revolução no campo da gentileza. Definiu que deveríamos ter preocupações e gestos de cuidado com desconhecidos e até com inimigos. A parábola do Bom Samaritano (Lucas 10, 25-37) define com clareza: o homem que nem era alguém do grupo judaico mais ortodoxo atendeu a vítima de um assalto. Cuidar de um desconhecido, pagar pelo seu tratamento e amparar uma necessidade ignorada pelos religiosos que passaram por ali era a nova regra. Gentileza como gesto de amor entrega, de amor ágape.

Da ideia de proteção indistinta ao fraco surge o código medieval da cavalaria e o contemporâneo do cavalheiro. Ainda que guarde um conteúdo patriarcal de supor o feminino como indefeso e que deve ser protegido (e controlado), são códigos que dialogam com o Bom Samaritano. A gentileza torna-se virtude além do pertencimento familiar.

A fala do Nazareno nem sempre foi ouvida. A Segunda Guerra foi o momento de maior atrocidade concentrada em nossa história. Em pouco tempo e em enorme quantidade matamos, destruímos, desabrigamos, humilhamos, violentamos, apagamos. O mundo conheceu um vórtice negativo: o que era feito, criado, inventando tinha como finalidade desfazer, eliminar, desinventar. Saímos da nefasta experiência para um mundo de guerra fria, ainda que com um certo otimismo. Fizemos uma Declaração de Direitos Humanos. Parecíamos ter chegado ao acordo mínimo de que certas atitudes de uns com os outros deveriam ser obrigatórias. E que fazer o mal era um erro. Erro coletivo que poderia nos levar à destruição. O bem comum era um acerto a ser buscado. Isso sempre foi um ideal que preconizava o cuidado de si e do próximo como política e a gentileza como cotidiano.

Voltemos ao Brasil. José Datrino, conhecido como Profeta Gentileza, escreveu em muitos pilares do Rio de Janeiro as frases sobre gentileza. Tido como louco, perambulava pela cidade distribuindo flores e frases sobre amor e cuidado com o outro. Faleceu em 1996. Não muito tempo depois, a divisão de limpeza urbana pintou os 56 murais de Datrino de cinza, como se escondesse pichações. A grande cantora Marisa Monte, chocada com o apagamento das inscrições, compôs a música Gentileza. Vale a pena ouvir. Em nossas cidades, o colorido vai para debaixo do cinza, a gentileza some diante de nossos olhos.

O mundo de 2020, repetindo e amplificando os anos mais recentes, foi da agressividade, da ‘lacração’, da comunicação violenta e do berro. Na política e no trânsito, na internet e até em almoços familiares a diferença foi estopim de raiva. A suprema forma de gentileza, a comunicação não violenta, escasseou. O que houve?

O colapso da empatia talvez esteja na crise da saúde, da política e da economia. Quando minha vida e estabilidade estão em jogo, fica mais difícil defender a percepção do outro e das suas necessidades. Na saúde, esforço mundial pelo desenvolvimento de vacinas é solapado pela ignorância que polemiza a origem do tratamento, pela idiotia que nega a vacinação, alegando que há um direito individual de não a usar. Ainda que esse fosse um direito, e não o é, pois uma sociedade é igualmente composta por deveres comuns, seria um ato de gentileza se vacinar: sem um porcentual alto de pessoas vacinadas, o vírus ainda estará à solta, matando, maltratando. Vacina não funciona de maneira individualizada, porém em grupo.

A política continua sendo o território do absurdo e da temeridade. Trump recusando-se a admitir a derrota e criticando o processo eleitoral que não o favoreceu. Similar processo ocorrendo por aqui nas eleições municipais. Sem política, somos, literalmente, idiotas, capazes de olhar apenas para nossos umbigos. Daremos com a cabeça no primeiro poste que encontrarmos no caminho.

Por fim, a economia não vinha bem e desmoronou neste ano. Em pouco tempo, saímos de 6.ª maior economia do mundo para um amargo lugar fora do top ten. O pior resultado histórico. A pandemia, diriam os otimistas. O mundo todo passou por ela e esse resultado foi apenas nosso. Na esteira, desemprego, baixos salários, empregos informais, trabalhos ocasionais.

Como cereja ácida desse bolo intragável, vivemos um mundo de coices, pontapés e desacatos. Os ogros sempre existiram, provavelmente estivessem mais envergonhados no pântano há algum tempo. Talvez formassem um clube fechado, autorreferente quiçá. De repente, ganharam a praça pública e seus berros calaram quase todas as outras vozes mais tranquilas. Foi o eclipse do sensato e a aurora do ogro do pântano. Como recuperar um pouco da sanidade e da gentileza? Que todos tenhamos muita, muita esperança em um mundo mais gentil.

É HISTORIADOR E ESCRITOR, AUTOR

DE ‘O DILEMA DO PORCO-ESPINHO’,

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