História de Notas & Informações – Jornal Estadão

Em fevereiro, a Polícia Federal (PF) arquivou o inquérito aberto para apurar as agressões que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes alegou ter sofrido, junto com sua família, no aeroporto de Roma. À época, o delegado Hiroshi Sakaki decidiu não indiciar o empresário Roberto Mantovani Filho, sua mulher, Andreia Munarão, e o genro do casal, Alex Zanatta, por entender que as ofensas que o trio teria dirigido a Moraes, além do tapa que Zanatta desferiu contra o filho do ministro, eram crimes de menor potencial ofensivo – o que já era evidente desde que o caso veio a público.

Agindo assim, Sakaki nada mais fez do que cumprir uma norma editada pela própria PF, segundo a qual os crimes de menor potencial ofensivo, como foi aquela lamentável altercação no aeroporto, não ensejam indiciamentos. Ademais, o delegado justificou que, para indiciar os investigados, os crimes dos quais eram suspeitos deveriam ser passíveis de extradição – o que não é o caso da injúria real.

É fato que Mantovani e seus familiares agiram como típicos vândalos bolsonaristas, que vivem de acossar e estigmatizar pessoas e instituições nas redes sociais e, eventualmente, nas ruas. Mas daí a apontar as pesadas baterias penais do Estado contra eles vai uma longa e civilizada distância. Ao que parece, porém, um desfecho anticlimático para o caso não seria bem recebido em Brasília – terra onde ofensas contra autoridades, nestes tempos esquisitos, chegam a ser tratadas como levantes contra o Estado Democrático de Direito.

Um mês após a conclusão do inquérito, o ministro Dias Toffoli, relator do caso no STF, atendeu a um pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) e determinou que a PF interrogasse Mantovani Filho outra vez. A PGR, segundo consta, queria saber se o empresário teria manipulado o vídeo do entrevero entre as famílias. Para essa nova fase de diligências, foi incumbido o delegado federal Thiago Rezende, haja vista que Sakaki pediu para deixar o caso. As razões de seu afastamento são desconhecidas, mas, de fato, o delegado nada mais tinha a fazer, pois ficou claro que a boa técnica policial adotada por ele não poderia levar a outro desfecho senão o arquivamento sem indiciamentos.

Eis que agora, sem que qualquer fato novo tenha sido trazido aos autos, o novo delegado decidiu mudar a posição da PF e indiciou Mantovani, a mulher e o genro pelas supostas hostilidades contra Moraes. É difícil tirar a razão do advogado da família, Ralph Tórtima, quando ele diz a este jornal que o inquérito contra seus clientes, “lamentavelmente, tem se revelado um verdadeiro vale-tudo”.

Como o próprio delegado Thiago Rezende reconhece, “muito embora as palavras proferidas (pelos investigados) não possam ser ouvidas, nada nas imagens contradiz o que foi dito pelos agredidos”. Como se vê, portanto, a nova conclusão, desta feita favorável ao ministro Alexandre de Moraes, ampara-se apenas e tão somente nos interesses do magistrado, não em prova concreta.

Parece haver dois tipos de ritos de persecução criminal no País. Um é destinado aos cidadãos comuns; o outro, aos processos em que o ministro Alexandre de Moraes figura como vítima. Nesse caso, a ordem jurídica é reinterpretada conforme o freguês. Só isso explica as muitas excrescências que têm sido naturalizadas quando o ministro figura num dos polos da ação. O magistrado, por exemplo, acaba de expedir mandados de prisão preventiva contra dois acusados de ameaçar sua família no mesmíssimo feito em que, corretamente, se declarou impedido de relatar. O que justifica essa bagunça?

O redivivo inquérito do aeroporto nem sequer deveria ter sido instaurado. Não fossem as vítimas quem são, é improvável que a rusga tivesse chegado ao conhecimento de uma autoridade policial. E, se tivesse, dificilmente iria mais longe do que uma carraspana do delegado de plantão. Mas, em se tratando de um ministro do STF, em particular de Moraes, tratado como a encarnação do anjo da guarda da democracia brasileira, tudo muda de figura.

* Nota: originalmente, este editorial transcreveu o trecho da decisão do delegado Thiago Rezende com um erro (”muito embora as palavras proferidas (pelos investigados) não possam ser ouvidas, nada nas imagens contradiz o que foi dito pelos agressores”).

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By valeon