De George Orwell a Carolina Maria de Jesus, o melhor da literatura em 2021

Ano começa com grandes nomes entrando em domínio público e reedições importantes no mercado editorial

Maria Fernanda Rodrigues, O Estado de S.Paulo

Um ano para ler, ainda mais, George Orwell. Sua obra, que voltou às listas de mais vendidos com a eleição de Trump e desde 2017 não sai de lá, entrou agora em domínio público. Isso quer dizer que qualquer editora pode publicar 1984, A Revolução dos Bichos (ou A Fazenda dos Animais, se preferirem) e qualquer outro livro do escritor britânico que, publicados sobretudo nos anos 1940, estão cada dia mais atuais e ecoam num mundo que assiste à ascensão do totalitarismo.

No prefácio a 1984 escrito por Thomas Pynchon em 2003, traduzido agora na edição da Penguin Companhia, o americano faz uma rica análise do livro, inclusive relacionando pontos centrais da lógica impiedosa do sistema descrito no romance com a atualidade. “O Ministério da Paz promove a guerra, o Ministério da Verdade conta mentiras, o Ministério do Amor tortura e chega a matar aqueles que considera uma ameaça”, escreve Pynchon. “Se isso parece excessivamente perverso, lembre-se que nos Estados Unidos dos dias de hoje poucos veem problemas num aparato de guerra chamado ‘Departamento de Defesa’, assim como não temos problemas em pronunciar ‘Departamento de Justiça’ a sério, apesar dos abusos bem documentados contra os direitos humanos e constitucionais cometidos por seu mais temível braço, o FBI.”

George OrwellUma nova edição de ‘1984’, fotografada na Livraria da Vila em Higienópolis, São Paulo, em julho de 2020; livro foi um dos mais vendidos na quarentena  Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Ao descrever o “duplipensamento” — a filosofia intensamente contraditória que rege a política do Partido, organização ditatorial e opressora no país de 1984 — “como uma espécie de sistema de pensamento esquizofrênico”, o escritor americano conecta a ficção do romance com a aspereza da realidade, em palavras que reforçaram seus significados nos últimos 17 anos. “Sabemos mais do que nos dizem, mas torcemos para estarmos enganados. Acreditamos e duvidamos ao mesmo tempo; parece ser uma condição do pensamento político no superestado moderno que se tenha sempre duas opiniões sobre muitas questões. Desnecessário dizer que isso é de uso inestimável para aqueles no poder que desejam lá permanecer, de preferência para sempre.”

Bem, essa já pode ser uma previsão que George Orwell acertou em 1984, especialmente na época de notícias falsas produzidas industrialmente e de “fatos alternativos”, como bem nomeou uma assessora do presidente americano Donald Trump.

Para Pynchon, o jogo de “o que Orwell acertou e errou” pode ser um perigo para o leitor e para o autor, e que “proporciona talvez um minuto e meio de diversão”. Mas logo em seguida, o próprio autor passa a enumerar percepções que o escritor de 1984 imaginou e que ganharam novas formas, ou mesmo a própria existência, desde a publicação do livro em 1949. 

Aqui vão algumas delas, e outras, também, e cabe ao leitor decidir sobre o que vai abaixo. “Previsões específicas”, diz Pynchon, “são apenas detalhes, afinal”.

  • Uso de helicópteros para vigilância e como “forma de imposição da lei”
  • A “teletela”, que inclusive ganhou relevância inédita com o advento da pandemia em 2020
  • “As notícias são o que o governo diz que são”, diz Pynchon, e hoje poderíamos acrescentar que as notícias às vezes são o que um grupo político mal intencionado quer que elas sejam
  • “A vigilância de cidadãos comuns entrou na rotina da atividade policial”, escreve Pynchon
  • Pynchon identifica em 1984 a percepção de Orwell de que “a vontade de fascismo não havia desaparecido; que, longe de ter conhecido seu fim, ela talvez não tivesse nem alcançado seu ápice”
  • O ditógrafo: Winston, o personagem principal do livro, dita em um aparelho que transcreve suas palavras
  • Versificador: uma máquina que produz literatura e música sem a interferência humana

George OrwellImagens do livro ‘1984 (edição em quadrinhos)’, ilustrada pelo artista paulistano Fido Nesti, sobre o texto de George Orwell  Foto: Fido Nesti/Quadrinhos na Cia/Companhia das Letras

A Nova Fronteira lança o box George Orwell com três volumes – e venda exclusiva pela Amazon. 1984 A Revolução dos Bichos ganham tradução de Adalgisa Campos da Silva. Menos conhecido, Um Pouco de Ar, Por Favor!, no qual o autor expõe a tensão entre a nostalgia e o progresso na Inglaterra pré-Segunda Guerra Mundial, foi traduzido por Regina Lyra. Os títulos poderão ser comprados individualmente fora da Amazon também. A editora lança, ainda, a HQ 1984, com roteiro de Sybille Titeux de La Croix e ilustrações de Amazing Ameziane.

A Companhia das Letras, que publicava com exclusividade a obra de Orwell, já lançou em 2020, 1984, com tradução de Alexandre Hubner e Heloisa Jahn, e A Fazenda dos Animais (inclusive em edição especial), vertida por Paulo Henriques Britto. E também a adaptação em hq de 1984 feita por Fido Nesti. Para este ano, ela apresenta, já no primeiro trimeste, Por que Escrevo e Homenagem à Catalunha.

A edição da Intrínseca de A Revolução dos Bichos contará com ilustrações de Ralph Steadman e tradução de André Czarnobai. George Orwell também estará no catálogo da Globo, Autêntica, L&PM, Antofágica, Novo Século e Via Leitura (Edipro) – pelo menos.

Orwell não é o único a entrar em domínio público em 2021, mas é em sua obra que as editoras estão de olho. Entre os outros estão o italiano Cesare Pavese (1908-1950), o americano Edgar Rice Burroughs (1875-1950), autor de Tarzan, e o dramaturgo irlandês Bernard Shaw (1856-1950) – dele, a Hedra lança o ensaio O Perfeito Wagnerita, sobre O Anel do Nibelungo, de Richard Wagner, com tradução de João Luiz Sampaio.

Este será um ano para tentar compensar o compasso de espera em que as editoras entraram em 2020. Com a pandemia, o fechamento das livrarias, o cancelamento dos eventos literários presenciais e o isolamento social, muitas editoras adiaram lançamentos, esperando um momento mais propício e de maior visibilidade para os novos livros e seus autores.

A Dublinense, por exemplo, prevê para este ano dois títulos que ela não pôde lançar em 2020. Um deles, Atlas do Corpo e da Imaginação, de Gonçalo M. Tavares, porque faltou matéria-prima no mercado gráfico como um todo, conforme explica o editor Gustavo Faraon. O outro, Todos Nós Ficaremos Bem, de Sérgio Tavares, porque o editor preferia esperar a volta dos eventos presenciais. “Mas já aceitamos que eles não voltam com segurança tão cedo. Então vamos também reaprender a publicar nossos brasileiros e chamar atenção para eles de outras maneiras”, comenta. No prelo, dois volumes do português Afonso Cruz, A Boneca de Kokoschka, vencedor do Prêmio da União Europeia de Literatura, e Nem Todas as Baleias Voam, e também Mobiliário Para Uma Fuga em Março, da brasileira Marana Borges.

Mas ainda é um momento de apreensão, na opinião do editor. “Se 2020 vai ser lembrado como ano que não aconteceu, temo que com tanta expectativa 2021 vire o ano que não começa nunca.”

A Ediouro Publicações traçou perspectivas otimistas para 2021 e prevê 250 novos títulos. “Mas nunca foi tão complicado fazer o planejamento estratégico do ano seguinte”, conta Daniele Cajueiro, diretora editorial do grupo. “O ano de 2020 foi difícil em todos os aspectos e, para o mercado editorial, que já vinha enfrentando diversas crises, se mostrou especialmente desafiador. Mas o último trimestre apontou para uma recuperação, observada em diversas linhas editoriais.”

O grupo vai lançar um novo selo, o Trama, que, com a consultoria de Trini Vergara, uma das fundadoras da V&R, vai publicar ficção internacional – mais especificamente thrillers e obras de fantasia. Pela Nova Fronteira, além de George Orwell, sairá, entre outros títulos, A Pensão de Dona Berta e Outras Histórias Para Jovens, coletânea com pequenos textos de ficção de Ariano Suassuna inéditos em livros. O selo Agir começa o ano com duas biografias – de Kamala Harris e de Joe Biden.

O Grupo Record também terá um selo novo, o e-stante. O aumento do interesse do leitor pelo livro digital foi o que motivou o investimento, explica a presidente Sonia Jardim. “O faturamento com e-books cresceu 45% em 2020, se comparado com 2019.” Entre os lançamentos do grupo estão Antologia Poética, de Pablo Neruda, pela José Olympio; Cadernos do Cárcere, de Gramsi, pela Civilização Brasileira; e Construir o Inimigo e Outros Escritos Ocasionais, de Umberto Eco, pela Record.

A Intrínseca aposta na primeira não ficção de John Green, autor do best-seller A Culpa é das Estrelas, e lança The Anthropocene Reviewed – originado de seu podcast homônimo. Ela prevê, ainda, o lançamento de Será Que Isso Presta?, do comediante Jerry Seinfeld

“A Todavia espera, e deseja, um 2021 com menos sobressaltos, sob todos os aspectos”, diz o editor Flávio Moura. Do ponto de vista editorial, ele destaca “o fortalecimento de uma agenda incontornável, ligada aos desafios associados à identidade racial e às desigualdades sociais e de gênero”. “Infelizmente”, completa, “a crise da democracia deve seguir um tema forte na pauta, ao menos do Brasil”.

Um dos destaques da programação da Todavia é Cartas a Uma Negra, de Françoise Ega. A autora, uma imigrante antilhana, trabalhava em casa de família na França quando leu, na revista Paris Match, um texto sobre Carolina Maria de Jesus e seu livro Quarto de Despejo. Ela, que morreu em 1976, se identificou com a história e passou a escrever cartas, nunca enviadas, à brasileira.

Por falar em Carolina Maria de Jesus (1914-1977), a Companhia das Letras, que adquiriu os direitos de sua obra em 2020 (menos o de Quarto de Despejo e de Diário de Bitita), começa a reeditá-la, e a editar inéditos, em junho.

Ainda entre os destaques da Todavia está A Visão das Plantas, de Djaimilia Pereira de Almeida, segundo lugar do Prêmio Oceanos, sobre um capitão de navio negreiro português que se aposenta e vai cuidar do jardim de casa – e segue sendo atormentado por seu passado tenebroso. Outro: Os Diários de Kafka – pela primeira vez em edição completa.

Na linha de diários, a Nós edita os de Virginia Woolf. Ela é tema ainda de Virginia, uma biografia romanceada escrita pela francesa Emmanuelle Favier e prevista pela mesma editora.

A Companhia das Letras relança, em edição de bolso, 26 Poetas Hoje, antologia de Heloisa Buarque de Hollanda dos anos 1970 que marcou época e apresenta As 29 Poetas Hoje. 45 anos depois daquele primeiro livro, ela escreve agora sobre novos nomes da poesia brasileira, como Adelaide Ivánova e Stephanie Borges. Já neste comecinho de ano saem, ainda, Sonhos do Meu Pai e A Audácia da Esperança, de Barack Obama, e, pela Zahar, Estranho Familiar, de Zygmunt Bauman. Pela Companhia das Letrinhas, será lançada uma versão infantojuvenil de Sejamos Todos Feministas, de Chimamanda Ngozi Adichie. Vai ter ainda O Mapeador de Ausências, de Mia Couto; Como Evitar um Desastre Climático, de Bill Gates; e Cinema e Política, de Paulo Emílio Sales Gomes (pelo selo Penguin).

Também em 2021, a Âyiné publica Lições de Shakespeare, de W. H. Auden. A Carambaia, Murambi, O Livro das Ossadas, de Boubacar Boris Diop. A Relicário, Inferno Musical Extração da Pedra da Loucura, de Alejandra Pizarnik, e Poesia, de Hannah Arendt. Por falar em poesia, a 34 lança a obra completa de Leonardo Fróes. Já a Cobogó manda para as livrarias O Livro do Disco: Dona Ivone Lara – Sorriso Negro, de Mila Burns.

Pela Oficina Raquel saem, entre outros, Memórias de Mama Blanca, da venezuelana Teresa de la Parra, e Cidade Feminista, de Leslie Kern. Pela estreante Fósforo, Real life, de Brandon Taylor. Já a Jandaíra (até 2020 conhecida como Pólen) lança Black Power, de Stokely Carmichael e Charles Hamilton, e Terra Fresca da Sua Tumba, da boliviana Giovanna Rivero. A Hedra manda para as livrarias uma edição superampliada, com quase duas mil páginas, de Labirintos do Fascismo, de João Bernardo. E a Rocco, ainda na esteira do centenário de Clarice Lispector, celebrado em dezembro, publica nova edição de Eu Sou Uma Pergunta, de Teresa Montero, no segundo semestre.

Isso, só para começar.

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By valeon

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