História de Notas & Informações – Jornal Estadão
Como lidar com uma pessoa que não só tem um temperamento instável, mas cultiva a imprevisibilidade como sua principal qualidade? A maioria das pessoas pode nunca encontrar alguém assim ou, se encontrar, pode se esquivar sem maiores consequências. Mas a partir de hoje, quando Donald Trump assume pela segunda vez a presidência dos EUA, o cargo mais poderoso do planeta, a questão se impõe literalmente a todo o mundo.
Tanto pior quando o próprio mundo vive sua maior instabilidade desde os anos 1930. As populações estão envelhecendo, algumas já diminuem. A Inteligência Artificial ameaça trabalhadores com a obsolescência. As sequelas econômicas da pandemia ainda se fazem sentir, e outra é provável nesta geração. O mundo esquenta literalmente a cada ano. A ordem unipolar pós-guerra fria acabou, mas está longe de ser suplantada por uma ordem multipolar. Por ora, só desordem. As instituições multilaterais estão em frangalhos. A guerra voltou à Europa. O Oriente Médio vive seu momento mais volátil em décadas, assim como a relação bilateral mais importante do mundo, entre EUA e China.
“Há uma certa imprevisibilidade sobre Trump que é ótima”, disse o próprio Trump, citando um empresário, na sua primeira campanha à presidência dos EUA. “Devemos enquanto nação ser mais imprevisíveis”, disse pouco depois.
Mas há dois traços inabaláveis e onipresentes em toda a vida privada e pública do 47.º presidente americano. Um é constitutivo: Trump é um narcisista. O outro é constituído: Trump é um homem de negócios. Combinados, conferem alguma previsibilidade. Já se sabe que, internamente, Trump será implacável com seus adversários e com os imigrantes, e externamente pretende erguer barreiras protecionistas e pressionar governos, mesmo de antigos aliados, para arrancar concessões aos EUA.
Os EUA mantêm fundamentos democráticos e econômicos robustos, mas eles serão testados por Trump. O eleitorado concedeu ao republicano maioria nas duas Casas do Congresso, e ele já dispunha de maioria conservadora na Suprema Corte. Para o mandato que se inicia hoje, forrou seu gabinete com “guerreiros culturais” para se vingar dos democratas, da imprensa e de quem mais se interpuser em seu caminho. Mas isso é um problema sobretudo dos americanos.
Para o resto do mundo, porém, anuncia-se um tempo sombrio, em que a ordem internacional constituída após a guerra fria sob a liderança americana, marcada principalmente pela globalização, simplesmente se desfez, sem que se saiba muito bem o que entrará no lugar. Trump já deixou claro que não tem aliados, apenas interesses, e que pode abandonar ou até mesmo agredir alguns dos mais tradicionais amigos dos EUA se achar necessário. Num mundo assim, em que a maior potência ocidental é dirigida por um presidente orgulhosamente errático, nada é garantido.
Os instintos de Trump deteriorarão as arquiteturas multilaterais, que serão substituídas por um grande balcão de negócios. Isso não significa necessariamente que Ucrânia, Taiwan, Europa e outros aliados serão abandonados. É tudo uma questão do que têm a oferecer. Mas, quando alianças são sustentadas só na base do toma lá da cá, e não em valores compartilhados, a tendência é de enfraquecimento e desconfiança. Rússia e China sonham em desgastar esses laços, e Trump fará o trabalho para elas. De resto, ambas oferecerão suas barganhas, o que pode significar o abandono de aliados.
Nem por isso as tensões com a China diminuirão. Provavelmente aumentarão. Mas não por uma disputa por princípios, e sim por vantagens materiais. O robustecimento da mãe de todas as guerras comerciais vai acelerar a pulverização econômica e geopolítica, o que dificultará resoluções de conflitos e a recuperação econômica global.
Dentre todas as incertezas, é certo que o governo Trump envenenará as relações internacionais, recriando o cenário descrito por Tucídides na guerra fratricida que dilacerou a Grécia antiga: “Os fortes fazem o que podem, os fracos sofrem o que devem”. Se isso soa cínico, não culpe o mensageiro, mas o homem mais poderoso do mundo.