História de Notas & Informações – Jornal Estadão

Terreno fértil de onde têm brotado sucessivas más notícias, o impasse em torno das emendas parlamentares finalmente recebeu um freio de arrumação para impedir o avanço de uma aberração nacional. A construção do acordo entre a cúpula do Congresso, o governo e o ministro Flávio Dino, relator do caso no Supremo Tribunal Federal (STF), e sua validação pelo plenário da Corte oferecem ao menos alguma luz para que se assegure mais transparência e rastreabilidade à previsão, destinação e liberação de recursos das emendas no âmbito do Orçamento da União. Mas convém ter cautela na comemoração: ainda que seja um acordo no limite do possível, trata-se de uma decisão tardia e longe de ser suficiente para resolver o mal maior, isto é, o excessivo poder de parlamentares sobre bilionários recursos federais.

Esse poder já tem longa data. A ampliação, imposição e diversificação das emendas parlamentares começou em 2015, ainda no mandato de Dilma Rousseff. Foi o momento em que se tornaram impositivas – o que permitiu um salto de R$ 9 bilhões para R$ 15 bilhões em 2017, no governo de Michel Temer. Dois anos depois, na gestão de Jair Bolsonaro, surgiu um novo triunfo: a impositividade das emendas coletivas. Mas o apetite clientelista chegou ao paroxismo com as antigas emendas de relator, identificadas com a sigla RP-9, e com as transferências especiais sob o rótulo de “emendas Pix”, realizadas diretamente pelos parlamentares em suas bases eleitorais e repassadas de maneira arbitrária e sem transparência.

O esforço para criar diques de contenção começou em 2021, quando este jornal revelou a existência de um sofisticado esquema de compra de apoio parlamentar urdido pelo governo Bolsonaro e pela caciquia do Congresso – o chamado “orçamento secreto”. O STF declarou sua inconstitucionalidade em dezembro de 2022, mas descobriu-se que a marotagem seguiu firme no governo de Lula da Silva, com ministérios transferindo dinheiro para municípios sob ordens de deputados e senadores e fora do alcance de controles institucionais claros e precisos. Converteu-se, assim, em valioso trunfo eleitoral de parlamentares nas eleições do ano passado, período em que R$ 53 bilhões do Orçamento estavam em suas mãos.

Pelo raio de ação dos cupins do Orçamento, no entanto, qualquer feito do acordo validado agora já terá sido um alento. É esse o caso. Com a decisão, o Congresso se compromete a dar transparência a valores, prazos e cronogramas, identificar nominalmente os autores das emendas de comissão e de relator – estas usadas desde 2020 no orçamento secreto e até hoje sem informação completa sobre quem indicou as verbas. Se cumprido o básico a partir daqui, as emendas, por ora bloqueadas pelo STF, passarão a ser liberadas. O plano validado, contudo, mantém represadas aquelas que desrespeitam parâmetros elementares de transparência e rastreabilidade dos gastos, ou suspensas por ordem judicial.

Chama a atenção, porém, o fato de os principais porta-vozes do atual corporativismo sindical congressista terem comemorado a liberação das emendas. Afinal, quase sempre quando parlamentares ficam felizes é o País que paga a conta. “É o reconhecimento das prerrogativas dos parlamentares”, vibrou o presidente da Câmara, Hugo Motta. “Reconhecemos que se trata de um instrumento legítimo para a entrega de bens e serviços à população”, disse o presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Enquanto isso, diferentes projetos tentam ressuscitar verbas que não foram pagas nos últimos anos. Também ainda não há responsabilização para quem atuou para driblar as decisões da Corte e repaginar o esquema.

Há muito o que corrigir, portanto, não só entre os ardis do Congresso quanto ao monumental controle exercido por parlamentares sobre o Orçamento federal. Não há caso similar no mundo. Em torno de 23% de todo o gasto discricionário – aquele que não é despesa obrigatória, como aposentadorias, salários e pisos constitucionais de saúde e educação – está nas mãos de deputados e senadores. Há dez anos eram 2%. Em termos proporcionais, nos EUA o Congresso não interfere em mais do que 1,5% das despesas discricionárias previstas no orçamento federal. Nem se o Congresso brasileiro exibisse atributos sobrenaturais se justificaria tamanha magnitude.

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By valeon