Relato de surto de febre amarela no Rio no século 19 mostra negacionismo entranhado no Brasil
Livro do principal sanitarista do Brasil império narra os esforços para conter o surto da doença na então capital do País
Clio – a musa da História – diverte-se, de vez em quando, com suas maldades. Eleva certos personagens obscuros a grandes figuras, enquanto condena outros a um implacável esquecimento. Foi o que aconteceu com José Pereira Rego, o Barão do Lavradio, nascido no Rio de Janeiro em 1816 e falecido na mesma cidade, em 1892.
Ilustração do Rio de Janeiro no século 19 Foto: Jean-Baptiste Debret
Felizmente, sua figura vem ressurgindo em nossos dias, tendo como um de seus marcos, a publicação pela Chão Editora do texto intitulado História e Descrição da Febre Amarela Epidêmica que Grassou no Rio de Janeiro em 1850.
Como informa o historiador Sidney Chalhoub, no significativo posfácio ao texto, o barão foi um nome central da medicina brasileira na segunda metade do século 19, preocupado em melhorar a saúde pública e as condições higiênicas do Rio de Janeiro. Autor de uma série de trabalhos que mostram sua preocupação por problemas sociais, tratou de temas que vão da prostituição às moléstias incidentes nas crianças pobres de seu tempo.
Charge publicada na revista ‘O Mosquito’ de fevereiro de 1873, quando outro surto de febre amarela acometeu o Rio de Janeiro Foto: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional
A elite imperial reconheceu seus méritos, a ponto de ele tornar-se, após seguidas designações, presidente perpétuo da Academia Imperial de Medicina. Recusou cargos políticos importantes, como ser nomeado presidente de diversas províncias, preferindo uma cadeira de vereador no Rio de Janeiro, onde ficava perto de suas pesquisas e de sua clínica.
O relato sobre a epidemia de 1850 destaca-se não só pela qualidade das informações, como também por virtudes que vão além do conteúdo estrito. São considerações de um “homem de ciência”, nos limites de sua época que, ao transmitir a seus colegas da corporação médica do Rio de Janeiro observações sobre a febre amarela, evita apelar para a intervenção da Divina Providência como recurso supremo.
A febre amarela não era novidade quando chegou ao Rio de Janeiro em 1850. Há notícias de que ela grassou na Capitania de Pernambuco em 1685 e visitara a capital do Vice-Reinado do Brasil no início do século 19. Mas sua incursão em 1850, foi mais severa de todas as que a antecederam. Os números levantados por Pereira Rego, ressalvadas as possíveis falhas, revelam que, considerada uma população de 266.000 habitantes, segundo o censo de 1849, houve 90.658 pessoas infectadas, entre as quais 4.160 morreram, representando, respectivamente, 34% e 1,5% da população. A desproporção entre infectados e mortos indica a baixa letalidade da doença quando não chega à fase em que atinge órgãos como os rins e o fígado dos pacientes, além de hemorragias.
O Barão do Lavradio associou o surto de 1850 a um conjunto de fatores, entre os quais o clima, as condições higiênicas que propiciavam a emanação de miasmas infectos, e a chegada de adventícios ao Rio de Janeiro. Quanto ao primeiro fator, ele acentuava o papel da prolongada seca de 1849, o calor ardente no verão, destituído de trovoadas, e a ausência de virações ao cair da tarde que teriam o efeito de amenizar a temperatura.
No que diz respeito à chegada de estrangeiros, – fator assinalado como de maior gravidade – ele alude a aventureiros que desembarcavam no porto e percorriam as ruas da Capital do Império, sem que medidas sanitárias fossem tomadas; alude também ao ingresso de escravos, na maioria doentes, acumulados nos navios em minúsculos e imundos espaços. Com reflexos contemporâneos, familiares a nossos ouvidos, o barão refere-se ainda aos riscos resultantes da aglomeração de pessoas e do rápido aumento populacional.
Pereira Rego discorre longamente sobre o caráter contagioso ou não da febre amarela. No final de seu texto, inclina-se a acreditar na hipótese afirmativa, sendo o contágio produzido, a seu ver, por um vírus ou um miasma, qualificando o miasma como “substância até hoje desconhecida”. Os miasmas, em cuja existência os gregos antigos já acreditavam, seriam substâncias putrefatas que, emanando de locais de grande sujeira, produziriam o envenenamento do ar.
O barão mantem no texto um tom cuidadoso a respeito dos avanços científicos. Assim, ele se pergunta: “Porventura estará demonstrado que no tifo, na escarlatina, no cólera, na coqueluche e outras moléstias reputadas contagiosas é antes um vírus que um miasma que as produz? Conhece-se também a diferença essencial que há entre um miasma e um vírus? Cremos que não”.
Vale a pena dar uma espiada nas transcrições, em rodapé constantes do texto. Lá se encontra (p.36) um parecer do Conselho de Salubridade de Salvador da Bahia, datado de dezembro de 1849, quando a febre aí já se instalara. Depois de reconhecer que se tratava de uma epidemia, os conselheiros insistiam que havia um exagero na afirmação dos jornais e de certas pessoas acerca de sua gravidade, dizendo a certa altura: “Esta epidemia nada tem em si de contagiosa nem de assustadora e os casos graves e fatais são devidos à predisposição dos doentes a moléstias análogas, ou ao susto de que os doentes se tem deixado apoderar, ou finalmente a tratamentos contrários à razão”. O “susto” dos enfermos bem poderia ser enfrentado “com a cessação dos dobres de sino das igrejas, que no ânimo dos doentes incutem idéias de morte que muito agravam seu estado; e em muitas circunstâncias podem por si sós causá-la em indivíduos nervosos”. Nos nossos dias, jamais imaginaríamos que os sinos das 360 igrejas da Bahia, cantadas por Dorival Caymmi, pudessem ter um efeito psicológico tão macabro.
O Barão do Lavradio tinha consciência de que pouco se alcançara na erradicação da febre amarela, mas algo se fizera no sentido de melhorar a salubridade do Rio de Janeiro, possibilitada unicamente por uma situação de emergência. Ele exemplifica, com a iniciativa de construção de cemitérios no Catumbi, “extramuros”, pondo fim ao costume de se sepultar os mortos nas igrejas – uma providência, em suas palavras, há muito reclamada pela ciência e a civilização.
O autor denuncia a ação de toda sorte de charlatães, responsáveis pela oferta de remédios milagrosos. No posfácio, Chalhoub sustenta que o principal alvo do ataque não eram charlatães, e sim médicos homeopatas, muito ativos durante a epidemia. Se os medicamentos que prescreviam eram ineficazes no enfrentamento de febre amarela, pelo menos seriam menos danosos do que alguns indicados pelos médicos alopatas, como sangrias, ventosas, ou sanguessugas a serem introduzidas em partes sensíveis do corpo.
O barão não aconselhava o uso indiscriminado dessas intervenções. Exemplificando, ele não recomendava as sangrias, que lhe pareciam inúteis ou perigosas. De fato, as sangrias só poderiam contribuir para a piora dos doentes, especialmente quando estes sofriam hemorragias debilitantes.
Acrescente-se, que os homeopatas eram bem vistos por membros da elite imperial. Chalhoub lembra um exemplo ocorrido na Câmara de Deputados, quando o deputado Moraes Sarmento apresentou uma emenda a um projeto que abria créditos para o combate da epidemia. Tratava-se do financiamento da abertura de um hospital para tratamento homeopático, chamado de “lazareto” pelos adversários da emenda, que acabou sendo rejeitada por escassa maioria.
A história das epidemias de febre amarela urbana teve um final feliz. Em 1881, o médico cubano Carlos Finlay publicou a primeira pesquisa indicando que mosquitos eram o vetor do vírus, cuja estrutura se desconhecia. No começo do século 20, uma campanha de erradicação do mosquito Aedes Aegypti em Cuba produziu efeitos muito positivos. Quando Osvaldo Cruz, na qualidade de Diretor da Saúde Pública do Brasil, chefiou a campanha de vacinação contra a varíola, ele visou também o combate à febre amarela, ao mandar demolir casebres em péssimas condições, criadouros de mosquitos, embora com consequências sociais muito penosas. Em 1931, a invenção do microscópio eletrônico, por dois cientistas alemães, possibilitou a identificação do vírus e, finalmente, em 1937, surgiu a vacina para a febre.
Navegando quase no escuro, o Barão do Lavradio foi um cientista perseverante, preocupado com a saúde da população e as condições de salubridade das cidades brasileiras. Nestes tempos marcados por um obtuso negacionismo, vale a pena lembra-lo e ler seu minucioso estudo sobre a febre amarela que fez tremer a Capital do Império.
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