Discurso da gestão Bolsonaro para recusar vacina da Pfizer expõe inabilidade, dizem especialistas

Idiana Tomazelli – Jornal Estadão

BRASILIA – As críticas públicas do governo do presidente Jair Bolsonaro à proposta da Pfizer para a venda de vacinas contra covid-19 foram recebidas por especialistas como atestado da inabilidade em pôr de pé um plano amplo e eficiente de imunização no País. O temor agora é que a guerra de narrativas afaste outras farmacêuticas com quem o Ministério da Saúde ainda poderia obter mais doses de vacinas num momento de aceleração no número de casos e óbitos.

No último sábado, 23, a pasta comandada por Eduardo Pazuello divulgou extensa nota acusando a Pfizer de buscar uma conquista de “marketing” nas negociações com o Brasil. No texto, a Saúde indicou diversos pontos que, na visão do governo brasileiro, pesaram contra o acordo com a farmacêutica americana. Esses obstáculos estão sendo contestados por epidemiologistas e pesquisadores. A Pfizer não comenta o assunto. A sucessão de trapalhadas do governo na crise do coronavírus levou partidos a discutirem o impeachment do presidente.

Uma das razões citadas pelo Ministério para não investir no acordo com a Pfizer é o fato de a empresa só ter acenado com dois milhões de doses no primeiro trimestre de 2021. “Para o Brasil, causaria frustração em todos os brasileiros, pois teríamos, com poucas doses, que escolher, num país continental com mais de 212 milhões de habitantes, quem seriam os eleitos a receberem a vacina”, disse a pasta.

O próprio ministro Eduardo Pazuello, porém, compareceu na última sexta-feira, 22, ao Aeroporto de Guarulhos para recepcionar a mesma quantidade de doses da vacina Oxford/AstraZeneca que o governo federal importou da Índia para acelerar a imunização, depois que o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), saiu na frente com a Coronavac, produzida em parceria com o Instituto Butantan.

Além disso, no ano passado, o governo chegou a negociar com a Pfizer a aquisição de 70 milhões de doses da vacina para o ano de 2021, mas a compra não avançou e o Brasil perdeu lugar na fila, apesar dos alertas da própria farmacêutica para a elevada demanda pelo imunizante.

“Dois milhões de doses (da Pfizer) eram pouco em setembro, (mas) sexta-feira recriaram uma ‘fonte luminosa’ e um ‘coreto’ para receber a mesma dosagem (da Oxford/AstraZeneca)”, criticou o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da USP, em sua conta no Twitter.

“Foi tomada uma decisão consciente. Não negociaram, mas não previram que isso ia gerar muitas críticas”, afirma o professor do Insper e doutor em Economia Thomas Conti. Ele avalia que a nota da Saúde é uma tentativa de “resposta política” à cobrança da opinião pública pela demora na vacinação. “Minha maior preocupação é que desviar a responsabilidade para o laboratório pode afastar outros fornecedores. O governo politizou a relação com a Pfizer”, diz.

A vacina da Pfizer é considerada por especialistas uma das mais complexas do ponto de vista logístico, pois precisa ser armazenada a uma temperatura de 70°C a 80°C negativos. O problema, porém, não seria incontornável. Lotufo listou uma série de medidas que permitiriam o aproveitamento efetivo das doses, como enviar os lotes de vacina da Pfizer para capitais da região Norte e fazer as aplicações nos próprios hangares e salas de aeroporto, esvaziados devido à menor circulação de pessoas por causa da pandemia.

Segundo o especialista, esse plano dispensaria o uso de “superfreezers”, pois as doses sairiam da caixa térmica diretamente para o braço das pessoas. “Se (o envio das doses) ocorresse em dezembro, hoje a catástrofe estaria minimizada na região Norte”, escreveu.

A epidemiologista Carla Domingues, que coordenou o Programa Nacional de Imunização (PNI) entre 2011 e 2019, afirma que é difícil fazer uma avaliação mais precisa das condições negociadas para a venda de vacinas da Pfizer, pois em nenhum momento o contrato foi divulgado em sua íntegra para verificar se há mesmo “cláusulas leoninas e abusivas”, como disse o Ministério.

No entanto, ela questiona o fato de o Brasil ser o único País a ter dificuldade de assinar com a farmacêutica americana, enquanto Estados Unidos, países da Europa e outras nações já fecharam negócio. “A dificuldade é porque o Brasil não se planejou para essa vacina, de enorme complexidade”, afirma.

Conti também vê uma série de inconsistências na posição do Ministério. Obstáculos como a ausência do diluente (que seria soro fisiológico comum) e de reposição do gelo seco para manter os frascos na temperatura correta seriam resolvidos com planejamento, aponta o especialista. Além disso, sem o acordo de dois milhões de doses, ele alerta que o Brasil terá à sua disposição imediata ainda menos vacinas, o que é prejudicial à população.

Sobre eximir a fabricante de responsabilização civil em caso de efeitos adversos causados pelo imunizante, Conti afirma que essa cláusula já existe há décadas em países desenvolvidos, inclusive para outros imunizantes, e é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Nos Estados Unidos, o Programa Nacional de Compensação por Danos de Vacinas (VICP, na sigla em inglês) existe desde 1988 e busca indenizar pessoas que eventualmente sofram efeitos colaterais após tomarem vacinas cobertas pelo fundo (entre elas as que evitam difteria, tétano e hepatite A e B). Para isso, elas ingressam com uma ação numa corte especial para analisar esses casos. Entre 2006 e 2018, 3,7 bilhões de doses foram aplicadas, e apenas 5.317 compensações financeiras foram pagas pelo VICP, segundo dados do órgão americano.

Conti explicou que esse fundo foi criado nos EUA após uma onda antivacina ter elevado o número de ações contra farmacêuticas, desincentivando a fabricação e causando queda na disponibilidade de imunizantes. Para o professor, o governo brasileiro poderia criar um fundo semelhante e abastecê-lo a partir de uma alíquota cobrada sobre a venda de vacinas. “Valeria a pena o governo brasileiro investir num modelo como esse”, afirma.

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