Por que temos tanto medo da febre?
Na maioria das circunstâncias, a febre é benéfica, reduzindo a gravidade da doença e encurtando sua duração
Jane E. Brody, The New York Times – Life/Style
Uma das muitas medidas que meu supermercado local está tomando para evitar a propagação da covid-19 é medir a temperatura com um equipamento antes de as pessoas entrarem. Curiosa para saber quão “quente” eu estava em um dia frio e chuvoso, perguntei o resultado ao atendente: 35,6 ºC.
A última vez que minha temperatura foi medida em um ambiente médico estava a 36,4. O que aconteceu com os 37 ºC que eu e a maioria dos médicos consideramos a temperatura normal do corpo?
Ilustração de Gracia Lam/The New York Times.
Como se estivesse lendo minha mente, Philippa Gordon, pediatra do Brooklyn, enviou-me um artigo, People’s Bodies Now Run Cooler Than ‘Normal’ – Even in the Bolivian Amazon (O corpo das pessoas agora é mais frio que o normal – até mesmo na Amazônia boliviana), de dois antropólogos, Michael Gurven e Thomas Kraft, da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara.
Como escreveram no site The Conversation: “Não há uma única temperatura corporal universal ‘normal’ para todos o tempo todo”. A temperatura corporal varia, não só de uma pessoa para outra, mas também ao longo do dia – menor pela manhã, maior à noite, subindo durante o exercício e depois dele, variando em diferentes momentos do ciclo menstrual e em idades diferentes – mais baixa para idosos como eu.
Além disso, pesquisadores que fizeram milhares de leituras de temperatura com a população de Palo Alto, na Califórnia, descobriram que 36,4 era o novo normal, cerca de um grau abaixo do que o médico alemão Carl Wunderlich estabeleceu em 1867 em um estudo com 25 mil pessoas. (A pesquisa de Wunderlich descobriu que a temperatura corporal “normal” variava de 36,2 a 37,5.)
Ao revisar os dados de 1862 a 2017, Julie Parsonnet, professora de Medicina na Universidade de Stanford, e seus colegas descobriram uma queda constante na temperatura corporal média de cerca de 0,05 grau Fahrenheit por década. Ela observou que pelo menos 75% das temperaturas normais estão agora abaixo de 37 ºC.
Se minha temperatura corporal fosse 36,4 ºC, isso significaria que estou com febre? Possivelmente, segundo Sharon S. Evans, professora de Oncologia e Imunologia no Roswell Park Comprehensive Cancer Center em Buffalo, no estado de Nova York, embora 38ºC seja geralmente considerada a extremidade inferior do espectro da febre.
Em uma revisão escrita com dois colegas, Elizabeth A. Repasky e Daniel T. Fisher, Evans mostrou que, na maioria das circunstâncias, a febre é benéfica, reduzindo a gravidade da doença e encurtando sua duração. (Ela enfatizou, no entanto, que os pacientes devem seguir o conselho de seus médicos de tomar medicamentos para reduzir a febre.)
“A febre age para mobilizar o sistema imunológico, função que é notavelmente bem conservada em muitas espécies – tanto as de sangue quente quanto as de sangue frio. A febre afeta todos os aspectos do sistema imunológico para fazê-lo funcionar melhor”, explicou ela em uma entrevista.
Para começar, disse Evans, a febre ativa a imunidade inata – a mobilização dos glóbulos brancos: neutrófilos que patrulham o corpo em busca de patógenos, e macrófagos que os devoram. Os macrófagos, por sua vez, enviam um alarme de que precisam de ajuda, levando a imunidade adaptativa – células T e células B – a entrar em ação. Essas células iniciam uma resposta específica ao invasor: a produção de anticorpos dias depois.
“Tratar a febre pode prolongar ou piorar a doença”, afirmou Paul Offit, vacinologista da Universidade da Pensilvânia, em Hippocrates Was Right: Treating Fever Is a Bad Idea (Hipócrates estava certo: o tratamento da febre é má ideia), fascinante apresentação no YouTube feita pelo The College of Physicians da Filadélfia.
“A febre aumenta a sobrevivência”, relatou Offit. Isso explica sua persistência ao longo da evolução animal, embora tenha um custo metabólico significativo. A imunidade, tanto inata quanto adaptativa, “funciona melhor em temperaturas mais altas”, observou ele.
Assim, quando você toma medicamentos como o acetaminofeno (Tylenol e suas formas genéricas) ou ibuprofeno para suprimir uma febre, você realmente trabalha contra os benefícios protetores inerentes oferecidos pela natureza. Sim, um antitérmico provavelmente faz você se sentir melhor, aliviando sintomas como dor de cabeça, dores musculares e fadiga. Porém Offit enfatizou: “Você não tem de se sentir melhor. Deve ficar debaixo das cobertas, manter-se aquecido e escapar da infecção”, e não sair por aí espalhando-a para os outros.
“Temos febre por uma razão”, disse ele. Ela ajuda a reduzir a transmissão viral e a encurtar a duração de doenças como a gripe.
O famoso remédio da vovó contra o resfriado comum, a canja quente, provavelmente ajuda, porque o vapor aumenta a temperatura das passagens nasais, reprimindo a reprodução do vírus, sugeriu ele.
Evans e colegas escreveram: “O fato de que a febre foi mantida ao longo da evolução dos vertebrados mostra que as temperaturas febris conferem uma vantagem de sobrevivência”. Isso também é verdade para invertebrados como os insetos. E quando animais com sangue frio, como lagartos ou abelhas, adoecem, eles tentam subir a temperatura corporal aumentando a atividade física ou buscando um ambiente mais quente, explicou Evans.
Então por que estamos tão empenhados em suprimir febres? O medo é uma das razões, segundo Gordon, a pediatra do Brooklyn, que disse que pais frenéticos frequentemente ligavam no meio da noite quando a febre do filho aumentava. Ela sugeriu que os médicos deixassem os pais de sobreaviso para um aumento noturno na febre de uma criança e explicassem que a temperatura alta em uma infecção não é prejudicial.
“O corpo tem um termostato embutido – o hipotálamo – que impede que as temperaturas se elevem a ponto de causar danos”, afirmou ela, e convulsões febris (convulsões breves, tremores e talvez perda de consciência que afetam algumas crianças pequenas) resultam da velocidade com que as temperaturas sobem, e não quão altas elas ficam. Em uma criança geneticamente suscetível, uma convulsão pode ocorrer quando a temperatura sobe rapidamente mesmo a baixas temperaturas, por exemplo, de 37,2 ºC para 38,2 ºC.
“As convulsões febris assustam os pais, mas não causam nenhum dano”, garantiu Gordon. Ela acrescentou, no entanto, que a febre é preocupante em bebês muito pequenos, que têm o sistema imunológico imaturo e ainda não foram vacinados contra doenças graves.
Mesmo sabendo dos benefícios no combate à infecção, Gordon disse que recomendaria medicação para diminuir a febre se uma criança, especialmente uma que ainda não fala, estivesse muito abatida e talvez sem conseguir dormir ou comer.
Os adultos geralmente são aconselhados a procurar ajuda médica se sua temperatura passar dos 39,4 ºC.
Uma ressalva importante sobre febre alta: ao contrário da resultante de uma infecção, não há um desligamento natural da febre induzida pelo meio ambiente, como a que pode ocorrer se uma criança estiver fechada em um carro quente ou se alguém estiver se exercitando com muita roupa em um dia quente, o que pode resultar em insolação fatal.
Os consumidores também devem considerar como a temperatura é medida antes de interpretar os resultados. A temperatura do ouvido é geralmente ligeiramente mais alta do que a oral, que por sua vez é maior que a das axilas ou da testa.
Para garantir uma leitura confiável, a temperatura dos recém-nascidos deve ser tomada com um termômetro retal, aconselhou Gordon. Mas, para crianças mais velhas com febre, o número exato de graus não importa, a menos que não tenham sido imunizadas, explicou ela.
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