Crise sanitária transformou ambiente virtual em zona de conflito ideológico e disputa de narrativas
Matheus Lara, O Estado de S.Paulo
Os ânimos exaltados por causa da crise sanitária, social e econômica que afeta o Brasil na pandemia transformaram as redes sociais em uma zona de guerra ideológica. Para analistas ouvidos pelo Estadão, a polarização política no País atingiu seu ápice neste início de ano, com narrativas vindas da esquerda à direita com ataques a reputações, discursos pró-impeachment, protestos contra decisões judiciais e acusações de discurso de ódio e de censura.
A palavra que marcou a semana nas redes foi “genocida”, usada por opositores do governo para criticar o presidente Jair Bolsonaro e sua gestão da pandemia. O termo “bombou” nas redes após o youtuber Felipe Neto ser intimado pela Polícia Civil do Rio por usar o termo para se referir ao chefe do Executivo. Foi com base na Lei de Segurança Nacional que a polícia intimou o influenciador após acusação do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente. Uma decisão da Justiça do Rio, no entanto, suspendeu a investigação.
O caso é sintomático no contexto de uma tendência de agravamento da tensão política no País, afirmou o cientista político Rafael Cortez. “Cada vez mais os eleitores brasileiros se concentram nos polos. As redes sociais refletem esse movimento. Há riscos de que a polarização ganhe traços de autoritarismo em meio ao jogo político democrático”, disse Cortez.
Ele apontou a volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à cena política – após recuperar o direito de ser candidato – como um dos elementos que tendem a acirrar ainda mais os ânimos online. “O custo do resultado eleitoral de 2022 é muito significativo, tanto pela sobrevivência política dos atores envolvidos com a disputa como também pela qualidade da democracia.”
Um dos temas políticos mais debatidos nas redes é a possibilidade de impeachment de Bolsonaro. A Avaaz monitorou palavras-chave relacionadas a essa discussão no Twitter e no Facebook entre janeiro de 2020 e fevereiro de 2021 e identificou que declarações polêmicas e ações controversas do presidente ajudaram a impulsionar os pedidos de afastamento nas redes.
A declaração de que a covid-19 é uma “gripezinha”, feita pelo presidente em março do ano passado, foi um desses momentos que causaram barulho. A crise da falta de oxigênio em Manaus no início deste ano também foi identificada como a “gota d’água” para a ampliação do uso de hashtags como #impeachmentsalvavidas, #forabolsonaro e outras.
Foram 2,3 milhões de tuítes citando o impeachment no período da pesquisa. No Twitter, as publicações de maior repercussão foram principalmente da esquerda, de atores como o ex-ministro Ciro Gomes (PDT) e do líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos (PSOL). No Facebook, a Avaaz identificou mais variedade entre os debatedores.
“Percebemos uma tendência. A pandemia fez o brasileiro reclamar mais nas redes e pedir cada vez mais o afastamento do presidente. Episódios de negligência em relação à pandemia geram picos de insatisfação. É uma tendência de agravamento da polarização”, disse Laura Moraes, coordenadora de campanhas da Avaaz Brasil. A instituição tem defendido o afastamento do presidente.
A pandemia impulsionou pedidos de impeachment de Bolsonaro. Desde o início de seu mandato, foram protocolados 74; apenas sete deles são anteriores a março do ano passado, quando foi registrado o primeiro caso de covid-19 no Brasil. Há 69 pedidos de impeachment na mesa do presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), a quem cabe submeter (ou não) as denúncias à análise dos deputados. Outros cinco foram arquivados por questões formais, como falta de assinaturas.
Censura
A Fundação Getúlio Vargas detectou uma alta no fluxo de debates sobre liberdade de expressão e censura entre novembro de 2020 e fevereiro deste ano – outro sintoma da guerra de narrativas na internet. De acordo com a Diretoria de Análise de Políticas Públicas (Dapp) da universidade, notícias sobre casos como a suspensão de contas no Twitter, como aconteceu com o ex-presidente americano Donald Trump e bolsonaristas investigados no inquérito dos atos antidemocráticos no Brasil, geraram picos de interação sobre os temas.
A identificação de uma tensão entre o combate a discursos de ódio e censura aconteceu também em casos de fora da política, como na morte de João Alberto Freitas, um homem negro de 40 anos que foi espancado até a morte dentro de supermercado Carrefour em Porto Alegre, em novembro. “As redes sociais podem ser instrumentos importantes de mobilização social e solidariedade. Vou apostar nessa sua virtude. Elas têm cumprido papel importante para mobilizar a opinião pública contra o racismo, por exemplo”, disse a historiadora Wania Santanna.