César Dario Mariano da Silva*
Foi aprovado o Projeto de Lei n° 1369, de 2019 (Substitutivo da Câmara dos Deputados), que inclui no Código Penal conduta até então tratada de maneira inadequada, como mera contravenção penal (art. 65 da LCD), quando, na realidade, cuida-se de ação grave, mais conhecida como stalking (perseguição), que atinge de maneira severa a tranquilidade e a paz de espírito das pessoas.
O novo tipo penal diz: “Art. 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade. Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa”.
No Brasil, diferentemente de outros países, como os Estados Unidos da América, a conduta mais conhecida como stalking nunca foi levada a sério. Tanto é verdade que a perseguição obsessiva, por qualquer meio, contra uma pessoa determinada, é tipificada como contravenção penal, que comina sanção insignificante. Diz o artigo 65 do Decreto-lei nº 3.688/1945, mais conhecido como Lei das Contravenções Penais (LCD): “Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável: Pena – prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.
Como a aludida norma não protege adequadamente o bem jurídico tutelado, isto é, a tranquilidade e a paz de espírito das pessoas, ocorrendo a sanção presidencial, será revogada expressamente e criada a nova figura típica, muito bem-vinda, aliás.
A perseguição obsessiva de uma pessoa a outra, pelos mais diversos meios, é algo comum na atualidade, mormente por conta das facilidades proporcionadas pelos meios informáticos. Com o avanço da modernidade, não só coisas boas foram criadas, mas muitas ruins. As redes sociais, do mesmo modo que une as pessoas e faz com que interajam melhor, propicia facilidades para as perseguições reiteradas, mais conhecidas como cyberstalking.
Não é só por meio da Internet que o stalker (perseguidor) age. Pode fazê-lo por meio de telefonemas incessantes, cartas ameaçadoras, perseguições a pé, envio de presentes indesejados, dentre outros diversos meios que a imaginação possa trazer.
As que mais sofrem com as perseguições são as mulheres, não obstante a conduta também ocorra em menor frequência tendo como o sujeito ativo a mulher e como vítima homem ou mesmo outra mulher.
E, não raras vezes, esse proceder pode levar a outras condutas mais graves, como estupros e até mesmo homicídios.
Com efeito, o novo tipo penal será instrumento efetivo de combate a essa modalidade de crime.
São vários os bens jurídicos protegidos, cuidando-se de crime pluriofensivo.
A perseguição obsessiva de uma pessoa a outra atinge profundamente a tranquilidade e a paz de espírito da vítima, podendo causar ataques de pânico, depressão e outras doenças psicológicas.
Além disto, pode invadir e ferir a intimidade e a privacidade do ofendido, uma vez que é comum até mesmo a violação da casa, da correspondência (eletrônica ou escrita) e das comunicações telefônicas. Nestes casos, poderá, se o caso, haver concurso de delitos.
O crime é comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa.
O sujeito passivo também poderá ser qualquer pessoa que possua a compreensão dos fatos. Assim, aquele que, por qualquer motivo, não possuir o correto entendimento de que está sendo perseguido, não poderá ser vítima deste delito, posto que não terá sua paz de espírito e tranquilidade feridas. No caso de haver invasão de sua casa, violação da correspondência ou de suas comunicações telefônicas, existem normas específicas para a punição dessas condutas. Sem que seja atingida a paz de espírito da vítima, não haverá este delito.
A conduta típica consiste em perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.
São três as ações possíveis, tendo como núcleo central a perseguição reiterada de alguém, ou seja, de pessoa determinada, por qualquer modo de execução. Essa perseguição ao ofendido poderá ser realizada por meio de:
1) ameaça à sua integridade física ou psicológica;
2) restrição de sua capacidade de locomoção;
3) invasão ou perturbação de sua esfera de liberdade ou privacidade.
A primeira observação a ser feita é que o verbo do tipo é perseguir alguém reiteradamente, isto é, repetidamente. Portanto, o crime é habitual. Uma ou algumas condutas não ensejarão a adequação típica. Exige-se perseguição, ou seja, condutas contínuas, mediante ameaças de qualquer ordem, restrição da capacidade de locomoção ou invasão ou perturbação da esfera da liberdade ou da privacidade do ofendido.
A conduta de ameaçar alguém, por qualquer meio, de causar-lhe mal injusto e grave, é crime previsto no artigo 147 do Código Penal. No presente delito, a finalidade do sujeito não é apenas prometer algo ao ofendido que lhe causará intranquilidade ou medo de forma isolada. A ação do sujeito não se esgota em uma frase, escrito, gesto ou qualquer outro meio simbólico. Cuida-se de ações reiteradas, contínuas, uma perseguição deliberada e obsessiva à vítima, mediante diversas ameaças à sua integridade física ou psicológica. Sequer há necessidade de que o agente tenha a intenção de cumprir o mal prometido; é exigido, apenas, que a ação seja apta a causar intranquilidade ou medo à vítima.
A norma exige, ainda, que o sujeito ameace a integridade corporal ou psicológica da vítima. Prometer causar lesão à integridade física de uma pessoa é a conduta mais comum, como quando se diz que a agredirá ou mesmo a matará. No entanto, prometer causar uma lesão psicológica, não é algo usual. Podemos imaginar a ameaça de deixar alguém louco ou com outros problemas psicológicos. É mais lógico pensar que das ameaças reiteradas podem advir problemas psicológicos, o que normalmente ocorre.
Uma das consequências mais comuns da perseguição reiterada de alguém é a restrição da capacidade de locomoção. A vítima do stalking pode se sentir amedrontada ou perder a vontade de sair de sua residência. Não há necessidade de que a vítima tenha tolhida totalmente sua liberdade de locomoção, bastando que seja reduzida.
Na ação em comento, a perseguição reiterada se dá mediante a restrição da capacidade de locomoção da vítima. Esta é a conduta empregada e não seu resultado, havendo evidente erro de técnica legislativa. Como a lei não deve conter palavras inúteis, podemos imaginar a hipótese de a intenção do agente ser, por meio da perseguição contínua, que o ofendido tenha restringida ou mesmo suprimida sua capacidade de locomoção, que, como já afirmei, costuma ser uma das consequências mais comuns da perseguição (stalking).
A perseguição reiterada igualmente pode se dar por meio da invasão ou perturbação da esfera de liberdade ou privacidade da vítima.
Parece-nos que a esfera da liberdade a que se refere a norma foi empregada em seu sentido genérico e não restrito, que já se encontra contemplada pela restrição da liberdade de locomoção. Esfera de liberdade se refere ao direito fundamental de não ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo sem lei específica que o obrigue (art. 5º, II, da CF).
A esfera da privacidade também foi empregada de forma genérica, alcançando a intimidade, que é algo mais profundo.
Embora provenientes da mesma matriz, a intimidade alcança os fatos mais reservados, podendo até serem chamados de secretos, que se revelados poderão causar sérios embaraços ou prejuízos substanciais de ordem moral ou material para seu titular. São fatos que não dever vir à tona sem motivo justificado, uma vez que integrantes da esfera mais restrita do indivíduo.
No círculo da vida privada os fatos também são reservados e merecem a mesma tutela da intimidade, mas não contém a mesma profundidade. Integram a esfera menos reservada e, embora com sua revelação possam causar prejuízo moral ou material para seu titular, não dizem respeito a fatos tão íntimos.
Aliás, a Constituição Federal (art. 5º, X) distingue a intimidade de outras expressões do gênero: vida privada, honra e imagem das pessoas. Não teria sentido o Constituinte diferenciar esses direitos fundamentais e a doutrina e a jurisprudência o tomarem como sinônimos.
Como a intimidade é um círculo concêntrico menor do que o da vida privada, havendo violação da primeira, a outra estar-se-á sendo igualmente violada, mas a recíproca não é verdadeira. Ocorrendo a invasão da vida privada nem sempre a intimidade, que é algo mais profundo, estar-se-á sendo violada. Porém, violado tanto um direito quanto o outro haverá lesão a bem jurídico constitucionalmente protegido (art. 5º, X, da CF), podendo ensejar ilícito penal, civil, administrativo ou mesmo a ilicitude de eventual prova produzida.
Com efeito, como a norma penal pune a perseguição por meio da violação da privacidade, que é o menos, igualmente deve punir quando resulta a violação da intimidade, que é o mais, sendo, aliás, conduta mais grave.
Os exemplos mais comuns da perseguição por meio da invasão da privacidade ou intimidade do ofendido são a violação das correspondências (no papel ou eletrônica), interceptação das comunicações telefônicas e invasão física ou virtual da residência.
A perseguição do ofendido pode ser dar por um ou mais desses meios (ameaças, restrição da capacidade de circulação, invasão ou perturbação da esfera de liberdade ou privacidade da vítima), mas deve ocorrer sempre de forma reiterada, contínua, obsessiva, de modo a ferir a paz interior da vítima, retirando sua tranquilidade.
A norma não exige que o ofendido efetivamente tenha a paz de espírito e a tranquilidade feridas ou violadas, mas que a conduta tenha o potencial de fazê-lo (crime formal).
A consumação ocorre com a perseguição contínua pelos meios descritos na norma (ameaça à sua integridade física ou psicológica; restrição da capacidade de locomoção; invasão ou perturbação da esfera de liberdade ou privacidade), sem a necessidade de nenhum resultado por se tratar de delito formal. Basta a conduta objetiva voltada à finalidade almejada, que é a perseguição reiterada.
Por se tratar de crime habitual, não é possível a tentativa. Ou ocorre a reiteração de atos, e o crime se consuma, ou ela não existe, não havendo o delito.
O § 1º diz que a pena será aumentada de metade se o crime for cometido contra criança, adolescente ou idoso (I) ou contra mulher por razões de sexo feminino, nos termos do § 2º-A, do art. 121 do Código Penal (II).
Criança, para efeito da norma, é a pessoa menor de 12 anos de idade. Adolescente é a maior de 12 e menor de 18 anos de idade.
Idoso é a pessoa maior de 60 anos de idade.
São situações objetivas previstas, ou no Estatuto da Criança e do Adolescente, ou no Estatuto do Idoso, que as definem. Assim, praticado o delito contra estas pessoas, o aumento da pena é obrigatório, não ficando ao alvedrio do Magistrado a aplicação, ou não.
Também haverá o delito quando o crime for cometido contra mulher por razões do sexo feminino, nos termos do § 2º-A, do art. 121 do Código Penal.
Referida norma dispõe que “Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
Para que haja o aumento da pena o delito deve se enquadrar nas hipóteses dos arts. 5º e 7º da Lei 11.340/2006, mais conhecida como “Lei Maria da Penha”, ou quando houver menoscabo ou discriminação da mulher em razão de seu gênero.
Depreende-se dos citados dispositivos da Lei Maria da Penha que são várias as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher. E o art. 7º diz expressamente que essas formas são meramente exemplificativas, podendo existir outras não previstas na lei especial.
Da conjugação dos arts. 5º e 7º da Lei 11.340/2006 temos que:
1) a violência doméstica e familiar somente pode ter como vítima a mulher, independentemente de sua condição pessoal ou preferência sexual; 2) pode ocorrer em qualquer local em que a ofendida resida, ou mesmo fora dele, desde que praticada por pessoa que consigo conviva ou conviveu, com ou sem vínculo familiar, por familiares, por pessoas unidas por laços naturais, de afinidade ou por vontade expressa, ou, ainda, em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independente de coabitação e de orientação sexual; 3) as formas de agressão podem ser de índole corporal, psicológica, moral, patrimonial ou sexual, cometidas por ação ou omissão baseada no gênero.
Em todas as hipóteses de violência doméstica e familiar, a mulher deverá se encontrar em situação de vulnerabilidade ou de hipossuficiência, não bastando sua condição de mulher, e o crime deverá ter sido cometido por alguém com quem ela conviva, tenha convivido, possua parentesco ou relacionamento íntimo de afeto.
Anote-se que nem sempre a mulher estará em situação de vulnerabilidade ou de hipossuficiência, e a sua presunção pura e simples banalizará o emprego da norma. Para a aplicação da majorante é exigida relação de poder e submissão do agente sobre a vítima mulher, que acaba sendo oprimida em decorrência de seu gênero. Por essas razões, não basta o fato de a vítima ser mulher e a existência de relação de convivência, intimidade ou de parentesco entre as partes.
E é condição para a majoração da pena que o delito envolva violência doméstica e familiar contra a mulher, ou menosprezo ou discriminação à condição da vítima, ou seja, de ser mulher.
Note-se, ainda, que a norma é clara no sentido de que para a majoração da pena o sujeito passivo deve ser do sexo feminino, não estando englobado o transexual, mesmo que obtenha a retificação do seu registro civil. Mulher é aquela que nasce mulher, ou seja, que em tese possa procriar e ser mãe. O transexual pode até parecer mulher, mas não o é para efeitos do Direito Penal, que pressupõe condição de vulnerabilidade do gênero, o que na maioria das vezes não ocorre com o transexual, que tem a força e compleição física do homem, pelo menos em regra.
Nesta segunda hipótese, a aplicação da majorante deverá ser analisada no caso concreto para se chegar à conclusão quanto à presença dos elementos indispensáveis, isto é, ser o delito cometido contra mulher por razões de sexo feminino, nos termos do § 2º-A, do art. 121 do Código Penal.
No caso de o crime ser cometido mediante violência, haverá concurso de delitos (§ 2º).
A violência a que alude a norma é a física e contra a pessoa, estando excluídas a ameaça e a violência contra a coisa, como o crime de dano, que fica absorvido.
A modalidade do concurso de crimes (material ou formal imperfeito) deverá ser analisada caso a caso, observando que as penas deverão ser somadas por expressa determinação da norma, que determina sua aplicabilidade, sem prejuízo das correspondentes à violência.
A ação penal é pública condicionada à representação da vítima, que pode, ou não, autorizar a persecução penal.
Há situações que a vítima prefere não levar o fato ao conhecimento das autoridades, o que, não raras vezes, pode trazer situações mais sérias, já que o criminoso pode ser sentir à vontade de progredir na sua conduta e cometer delitos mais graves.
Enfim, a norma, embora peque por alguns erros de técnica legislativa, veio em boa hora e esperemos seja sancionada pela Presidência da República.
*César Dario Mariano da Silva, procurador de Justiça – SP. Mestre em Direito das Relações Sociais. Especialista em Direito Penal. Professor universitário. Autor de vários livros, dentre eles Manual de Direito Penal, Lei de Execução Penal Comentada, Provas Ilícitas, Estatuto do Desarmamento, Lei de Drogas Comentada e Tutela Penal da Intimidade, publicados pela Juruá Editora
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