Como saber se a felicidade está na primeira fila ou no prazer de contemplar o mundo da última?
Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo
Há alguns anos, fui convidado para uma palestra em um grande evento de moda em SP. Eu deveria falar sobre Luís XIV, Versalhes e a noção de luxo na França, um tema bom, boa bibliografia e sólidas reflexões de especialistas. Preparei a aula e fiz a palestra. Ao final do evento, a promotora pediu que eu ficasse para o desfile que ocorreria. Jamais havia visto um e fui fisgado pela curiosidade.
Entramos por um bastidor e ela me deixou no espaço ainda vazio. Sentei-me em uma cadeira da primeira fileira. Minutos depois, a mesma promotora voltou e, de forma muito educada, pediu-me que eu passasse para a segunda fileira. “A primeira”, ela disse, “é ocupada por pessoas influentes do meio”. Passei para o lugar que me cabia naquela pirâmide alimentar e pude ver, naquele fim de tarde, meu primeiro e único desfile.
Mais tarde, pensei na sabedoria do conselho de Jesus. No capítulo 14, de Lucas, o Mestre diz que devemos evitar a precedência vaidosa nos assentos. “Ao contrário, quando fores convidado, senta-te no último lugar e, assim, aquele que te convidou te dirá ao chegar: ‘Meu amigo, senta-te mais para cima!’ E isso será honroso para ti diante de todos os convidados.” (Lc 14,10)
Bem, como de fato não pertenço ao mundo da moda, a segunda fileira não me pesou. Sempre penso muito na questão dos lugares como metáfora complexa. Quase todos os discursos atuais enfatizam que a qualidade alta e o desempenho brilhante estão ao alcance da pessoa resiliente e esforçada. Tente, faça de novo, não desista, levante-se a cada tombo e siga em frente com mais energia. Isso ajuda muito para animar. Seria uma verdade universal?
Eu acredito, como professor, que devo incentivar alunos a conseguirem mais e a darem o máximo de si. Porém, todos estão destinados à primeira fileira bastando o esforço? Já toquei no tema aqui no jornal, porém ainda não esgotei minha dúvida interna: é justo incentivar todo mundo ao máximo (já que nunca sabemos o pleno potencial de cada um) ou é cruel estimular a sardinha a tentar o voo do albatroz? Não tenho uma resposta clara.
Com uma turma de alunos cabe-me falar que o sucesso das notas está ao alcance de quem se esforçar. Porém, no universo circunscrito da sala de aula, a avaliação é pensada na média. Não faço provas para gênios nem pergunto coisas tão elementares que ofendam a inteligência comum. Então sim: todos podem, bastando o esforço. Mas… e na vida? Se eu ficar insistindo com alguém que pode brilhar muito e de forma autônoma, e a pessoa perder um tempo enorme (e inútil) realizando algo muito além das suas capacidades? Quando a crítica realista se torna cruel e quando o elogio entusiasmado seria enganador?
A grande dor contemporânea, estimulada pelas redes, é a crença na felicidade e sucesso para todos. Acredito na meritocracia, porém, na maneira como a vejo defendida, alimenta-se uma enorme frustração para as terceiras e quartas fileiras.
Uma vez, um senhor experiente disse a uma grande amiga que a filha dela deveria buscar o amparo de um bom casamento, pois era pouco provável que conseguisse algum sucesso pelo trabalho autônomo dela. Eu e minha amiga ficamos indignados. Ela, pela raiva da opinião sobre a filha; eu, pelo preconceito misógino. Isso ocorreu há quase 20 anos. A adolescente cresceu, fez um curso superior e, pelo que sei, nunca conseguiu progredir a ponto, sequer, de se sustentar. Não seguiu o conselho daquele senhor e não desenvolveu uma carreira. Ficou com o pior de dois mundos. Seria o velho senhor cruel ou realista? Era uma profecia fatal ou estaria dentro do desvio padrão aceitável? Pior: rotular a filha da minha amiga com a etiqueta de medíocre e dependente seria mais duro ou mais prático? Não consigo encontrar uma resposta sábia.
Minha ideia sempre foi “professoral”. Oferecer a melhor aula possível para todos, indicar os melhores livros, responder a todas as dúvidas e, espalhando as melhores sementes, esperar que cada solo produza de acordo com sua capacidade ou sua vontade e no seu tempo. No espaço protegido da sala de aula eu, mesmo tendo errado bastante, continuo acreditando na ideia do melhor para todos. Hoje, sei que só respondo pelo que eu faço. A recepção da mensagem é livre e incontrolável.
Abrir mão da crença de que todos podem melhorar sempre é acreditar no Admirável Mundo Novo, de Huxley. Lá, todos são predeterminados ao exercício de funções específicas. Ninguém precisa de motivação: alguém nasce alfa ou beta e pronto. Como nas colmeias, inexistem abelhas infelizes. Todos são eficazes e funcionais.
Acredito que o mundo dará doses cavalares de desânimo e de críticas. A vida costuma ser um balde de água fria a cada instante. Para lidar com isso, pais e professores, responsáveis diretos em geral, devemos reforçar o potencial de todos sempre. Sem ilusões e correndo o risco do equívoco, podemos dizer a verdade: o futuro é incerto e o esforço sempre pode melhorar cada um de nós. Condenar um jovem a um fracasso prévio é mais cruel do que tudo. Nunca conseguiremos profetizar com certeza. Grandes gênios tiveram problemas na escola, como Einstein. Cabe ao jardineiro regar com boa água todas as plantas. O profissional que planta sabe que algumas não darão flores. Por fim, como saber se a felicidade está na primeira fileira ou no prazer de contemplar o mundo da última? Como distinguir se o conselho do velho senhor para a filha da minha amiga era sábio ou eco da dor dele, que, afinal, também não tinha tomado lugar logo à frente na vida (e talvez sonhasse com um casamento em que controlasse a esposa)? Um desafio sempre é mais bem enfrentado se for com esperança.
É HISTORIADOR E ESCRITOR, AUTOR DE ‘O DILEMA DO PORCO-ESPINHO’, ENTRE OUTROS