*Ricardo Prado Pires de Campos– Jornal Estadão

Dizem, os economistas, que a escassez gera elevação nos preços. Nessa época de pandemia, com a escassez de vacinas e outros insumos não têm sido diferentes.

Primeiro, vimos as notícias de superfaturamento em ventiladores mecânicos, testes e agulhas; agora, a competição chega às vacinas. Poderão, as empresas privadas, adquirir o insumo ou somente o setor público deve ter autorização para isso? Nesse momento, a questão ainda pende de decisão pelo Congresso Nacional, que havia autorizado a compra pelo setor privado, mas apenas se doassem as vacinas ao governo. Óbvio, que não iria funcionar sem reciprocidade.

Além da explosão nos preços dos insumos e aparelhos utilizados no tratamento da moléstia, surgiu um outro problema diante da escassez de vacinas, o fura-filas. Esse personagem não é estranho em nosso país, mas sua presença, na pandemia, traz maiores desafios.

Nas campanhas de vacinação anteriores, sempre houve vacina para todos. Desta vez, todavia, preferimos deixar passar a oferta da Pfizer no ano passado. O Brasil não teve interesse na aquisição do imunizante.

Com a falta de vacinas, agora, surge o famoso jeitinho brasileiro de resolver os problemas, contornando as barreiras legais. A imprensa toda noticiou o caso dos empresários de Minas Gerais que adquiriram a vacina no mercado paralelo, e foram vacinados furando a fila.

Quando a burla às regras legais se faz presente, o ordenamento jurídico traz soluções. Embora possa haver alguma incerteza em alguns casos, na maioria das hipóteses, a legislação é muito clara.

Se a pessoa interessada em se vacinar fizer afirmação falsa ou apresentar documento falso para demonstrar condição de preferência que não possui, estaremos diante dos crimes de falsidade ideológica ou uso de documento falso, se praticados pelo usuário do serviço público.

Já o funcionário da saúde poderá cometer os crimes de prevaricação ou peculato, se descumprir a ordem de vacinação intencionalmente ou desviar as doses da vacina para uso próprio ou de pessoas de seu interesse. Como a vacina, adquirida com o dinheiro dos impostos passa a ser um bem público, é perfeitamente possível interpretar que o desvio da vacina tipifique o crime de peculato, pois, terá ocorrido desvio ou apropriação do bem público.

No caso dos empresários de Minas Gerais que teriam adquirido as vacinas furando a fila, a Polícia foi chamada para apurar a ocorrência, e, ao que se descobriu, a enfermeira não passava de cuidadora de idosos e as vacinas não eram mais que soro fisiológico. Ou seja, as pessoas que imaginavam estar enganando às autoridades, ou burlando às normas do país, em verdade, estavam sendo enganadas pela falsa enfermeira e as falsas vacinas. Na época das fake news, vacinas fake não chegam a ser uma novidade completa.

Se os empresários efetivamente receberam apenas soro fisiológico, produto de comercialização liberada no país, não haverá crime, não da parte deles. A conduta pode ser eticamente censurável, mas não havendo desvio ou apropriação de bem público, o comportamento passa a ser atípico, como dizemos juridicamente. Isto é, a conduta não se amolda, não se enquadra nos limites da descrição legal, portanto, não pode ser considerada criminosa. Não estarão sujeitos sequer a processo criminal, dado que no lugar de agirem criminosamente (a lei penal não pune a mera intenção, ao contrário das normas religiosas, se a conduta não chega a se realizar), eles acabaram sendo vítimas de outras pessoas “mais espertas” do que eles.

O crime, agora, passa a ser o de estelionato. Típico delito do vigarista que, se aproveitando da boa fé ou da ganância das pessoas, acaba “vendendo” algo que jamais poderá entregar, ou porque não possui, ou porque a mercadoria não existe. O golpe do bilhete premiado é o exemplo típico dessa espécie de ilícito. A vacina, nesse momento da pandemia, não deixa de ser um “bilhete premiado”, pois garante o passaporte para uma vida normal. Quem responderá pelo delito será a falsa enfermeira e seus comparsas.

O delito de estelionato é comum no mundo dos negócios, e consiste na utilização de uma fraude, uma farsa, um ardil, com a finalidade de obter um benefício em prejuízo alheio. Ou seja, o estelionatário busca um ganho indevido se valendo de uma falsa aparência: no caso, uma falsa vacina.

Cabe registrar que a vacina só se tornou equiparável a um prêmio de loteria porque vivemos em período de escassez; a falta de ação dos governantes, a inércia diante do flagelo, o descaso com a vida das pessoas, nos leva a transformar as vacinas em bem de elevadíssimo valor.

Ao contrário daqueles que negam a existência da pandemia, quem quer a cura busca a ciência, busca a vacina, mesmo que não seja 100% segura, nem 100% eficaz, ainda é a melhor solução que a humanidade conseguiu produzir no decorrer da história. Esperemos que os institutos de pesquisa consigam produzir vacinas para todos.

*Ricardo Prado Pires de Campos, presidente do MPD Movimento do Ministério Público Democrático (MPD), procurador de Justiça aposentado e professor de Direito com mestrado em Processo Penal

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