Duas vezes mais alunos fora da escola
Restrição de acesso à internet, queda na renda e desigualdade social dificultam o aprendizado e contribuem para o aumento do abandono escolar, que já atinge 1,38 milhão de estudantes
Por Izabela Ferreira Alves,
Queila Ariadne, Rafael Rocha e
Tatiana Lagôa
Desde o início da pandemia, a rotina da técnica de enfermagem Ana Lúcia Ferreira, 33, virou de cabeça para baixo. Como se não bastasse estar na linha de frente da batalha contra a Covid-19, e o marido, vendedor autônomo, ter reduzido em 80% o rendimento mensal, passou a lidar com a possibilidade de ter que tirar os filhos da escola particular pela redução na renda. Do apartamento no bairro Frei Leopoldo, na região Norte de Belo Horizonte, ela acompanha os filhos, de 2 e 4 anos, regredirem dia após dia sem os estímulos escolares.
A rotina pandêmica de Ana Lúcia mescla redução de renda, atuação na linha de frente contra a Covid e atenção com a educação dos filhos Lucca e Leonardo
“Fiquei impressionada com a forma como os meninos retrocederam e como é fundamental o convívio com educadoras e outras crianças.”
Ana Lúcia Ferreira, técnica de enfermagem
Do outro lado da cidade, a cerca de 20 km de distância de lá, sua xará, Ana Luiza Cardoso de Macedo, 37, já “entregou para Deus” o aprendizado dos filhos, de 11 e 15 anos. Desempregada e moradora da ocupação Carolina de Jesus, na região Centro-Sul da capital, ela não tem internet para que as crianças acompanhem aulas nem condições financeiras para imprimir as atividades enviadas pela escola.
Além do nome, Ana Lúcia e Ana Luiza compartilham a impossibilidade de acompanhar as aulas remotas dos filhos, e as duas temem pelo desenvolvimento das crianças. “O mais velho voltou a chupar bico”, conta Ana Lúcia. Já Ana Luiza está mais preocupada com a comida. “Estou sem emprego. O que está me salvando é a cesta básica da prefeitura”, diz a mãe.
As histórias são de duas Anas, mas contam a realidade de uma população inteira. Seja pela desigualdade que separa classes ou pela defasagem de aprendizado que chega para todos, o Brasil está à beira de um abismo educacional. “Com a pandemia, tudo isso está piorando, pois os estudantes mais pobres tiveram um acesso precário. Todos foram prejudicados, mas os mais pobres, muito mais. As diferenças que já eram grandes vão ficar abissais”, afirma o pós-doutor em estatística pela Universidade de Michigan e professor emérito da UFMG José Francisco Soares.
Ana Luiza e seu filho Lucas
“Estou sem emprego. O que está me salvando é a cesta básica da prefeitura”
Ana Luiza Cardoso de Macedo, desempregada e moradora da ocupação Carolina de Jesus
Dados do Unicef, compilados a partir do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dão a dimensão de um reflexo preocupante da pandemia: o abandono escolar. Em 2019, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, mais de 700 mil crianças e adolescentes de 6 a 17 anos não frequentavam a escola, o equivalente a 2% do total da amostra. Em 2020, outra pesquisa (Pnad Covid) – que perguntou se o aluno tinha frequentado as aulas nos últimos 15 dias – revelou que esse percentual havia praticamente dobrado: 3,8%, ou 1,38 milhão de alunos. Em Minas Gerais, a taxa subiu de 2% para 4%.
Segundo o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), que elaborou o estudo para o Unicef, soma-se a essa conta o número de estudantes frequentes, mas que não receberam nenhuma atividade no ano passado, e aqueles que receberam as tarefas, mas não conseguiram fazê-las em 2020 – taxa que ultrapassa 6,5 milhões.
Mesmo quando a pandemia passar, os desafios desse abismo da educação ainda vão perdurar. Relatório recente do Banco Mundial prevê que a necessidade de manter as escolas fechadas por muito tempo pode fazer com que até 70% das crianças não consigam ler e compreender um texto simples ao concluir o ensino fundamental na América Latina e no Caribe. Antes da Covid, eram 50%.
Gabriela e Raphael, filhos de Fernanda, tiveram desafogo na escola no momento de perdas
Perdas e medo e perdas tomam conta dos lares
Na fase mais difícil da sua vida, quando perdeu o pai para a Covid-19 e viu a mãe e o irmão também internados com a doença, a advogada Fernanda Fonseca, 39, pôde contar com a participação da escola. Para ela, mesmo virtual, foi um apoio nesse momento de luto. Mas, para 6,5 milhões de crianças e adolescentes brasileiros, a situação é de desamparo, conforme pesquisa do Unicef a partir de dados do IBGE.
Os filhos de Fernanda, Gabriela, 6, e Raphael, 8, não fazem parte desse grupo. Enquanto organizava o ensino remoto, o colégio da rede particular fornecia estudos autônomos, brochuras para as famílias retirarem impressas e fazerem em casa. Poucos dias depois do enterro do avô, ainda em abril de 2020, tiveram início as aulas online. “Para os meninos e para nós, são muitas perdas. O contato (virtual) com os colegas e as professoras amenizou isso”, conta.
“Estou em tempo de enlouquecer. Só Deus para me dar força. Minha filha de 11 anos mal sabe escrever”
Kelly Alessandra de Freitas, dona de casa
Para os três filhos da dona de casa Kelly Alessandra de Freitas, 27, de 1, 5 e 11 anos, o acesso à educação não chegou. “A gente não tem internet para baixar as atividades, e não sobra dinheiro para imprimir nada”, conta Kelly, moradora do Cabana Pai Tomás, um aglomerado na região Oeste de Belo Horizonte. Antes da pandemia, os dois filhos mais velhos se alimentavam na escola, o que deixava as despesas menores. “Estou em tempo de enlouquecer. Só Deus para me dar força. Minha filha de 11 anos mal sabe escrever”, diz.
Para o professor emérito da UFMG José Francisco Soares, se a desigualdade no acesso e na qualidade, conforme o nível socioeconômico, cor, raça, gênero e local de residência das famílias, já era marca da educação brasileira, agora o cenário é desolador. “A tecnologia pode ter efeito equalizador, mas não foi o que ocorreu. Primeiro, ela não chegou para todos no nosso país e, aonde chegou, foi empurrada. Precisamos de muito investimento e de nos lembrarmos sempre que ela não substitui a escola”, defende Soares.
Desigualdade na educação brasileira se acentou com a pandemia de coronavírus
Acesso à educação é pior entre os negros e os mais pobres
Crianças negras e pobres são as com menos acesso à educação na pandemia, segundo a pesquisa da Fundação Abrinq “Cenário da Infância e da Adolescência 2021”. Enquanto 7,2% das crianças brancas de 7 a 14 anos não tiveram acesso às tarefas no ano passado, 15,5% da população negra entrevistada enfrentou o mesmo problema. A fundação sobrepôs, ainda, a Participação no Bolsa Família (PBF) e, entre negros participantes do programa de transferência de renda, o percentual sobe para 20,5%.
Na faixa etária de 15 a 17 anos, 12,3% dos estudantes brancos e 21,5% dos alunos negros não receberam atividades escolares. Quando a família negra também tinha PBF, o indicador saltava para 26% do total sem acesso às tarefas da escola.
Para o diretor de pesquisa e avaliação do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), Romualdo Portela, é um desastre educacional. “As famílias mais ricas têm condições materiais e culturais para resolver os problemas educativos. A natureza do trabalho da parcela mais pobre da população era mais presencial, e o desemprego é realidade. Neste momento de empobrecimento brusco e latas vazias, a escola é artigo de luxo. A luta é por comida”, analisa.
Muitos Brasis em um
Estados com os maiores índices de alunos fora da escola têm alta mortalidade
https://e.infogram.com/a41d46e7-d20d-44a5-80c8-df607a0cc579?src=embed Roraima, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Distrito Federal. Distribuídos em quatro das cinco regiões brasileiras, esses Estados apresentam os maiores índices de crianças e adolescentes fora da escola e também as maiores taxas de mortalidade pelo coronavírus por 100 mil habitantes. Os dados referentes à frequência escolar são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), reunidos na Pnad Covid de novembro de 2020. O número de mortes, do mesmo período, é do Ministério da Saúde. O cruzamento das informações feito por O Tempo mostra que, por mais que os impactos do coronavírus apareçam do Norte ao Sul, as desigualdades escancaram diversos Brasis dentro de um só país.
Para a socióloga Sandra Unbehaum, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas, um efeito da pandemia sobre o abandono escolar pode estar relacionado a uma precarização preexistente, somada ou potencializada por uma crise política nesses Estados.
Em Roraima, 38,6%, ou 46.987 estudantes de 6 a 17 anos participantes do universo da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Covid não frequentavam a escola em novembro de 2020. O Estado também apresentava a maior taxa de mortalidade no fim daquele mês: 122,8 óbitos por 100 mil habitantes. Para o diretor da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Maxim Repetto, por trás dos indicadores está a falta de uma estrutura básica prévia, de internet, de estímulos e de políticas públicas claras para diminuir as diferenças sociais.
“A Covid não apenas ampliou as desigualdades no acesso à saúde e à educação, mas escancarou problemas estruturais anteriores, o que fez piorar tudo aqui, muito rápido e muito fortemente. Nas comunidades indígenas, a situação se agrava muito mais”, pontua Reppeto.
Segundo ele, os hospitais de Boa Vista, antes da pandemia, já viviam à beira do colapso, com contínuos escândalos de corrupção e desvio de dinheiro, e, na educação, o abismo assola também o ensino superior. “Universitários têm muita dificuldade de acompanhar as aulas remotas, sem computadores, com celulares obsoletos e internet de péssima qualidade, isso na capital. No interior e nas comunidades indígenas, é inviável”, compara.
No Sudeste, Minas Gerais apresenta a melhor situação, com 48,6 óbitos por 100 mil habitantes e 7,3% dos alunos (244.319) fora das escolas. Na pesquisa do ano anterior, a taxa era de 2%.
No Rio Grande do Sul, 108.188 estudantes não frequentavam as aulas em novembro de 2020, e a taxa de mortalidade da Covid-19 era de 63 óbitos por 100 mil habitantes. Para a professora da Universidade Federal (UFRGS) Daniela Pavani, as relações entre educação e as desigualdades sociais justificam esses indicadores. “A pandemia nos mostra o quão multifacetado é o problema. Em Porto Alegre, a meu ver, estamos vivenciando as consequências disso. Insegurança sanitária, ausência de políticas públicas, crescimento do número de moradores de rua e do trabalho infantil. Nosso Estado vem, sistematicamente, sucateando a rede pública de ensino e os profissionais da educação. Nossa capital, também”, afirma.
Oficial de educação do Unicef no Brasil, Júlia Ribeiro destaca que, mesmo com todas as mudanças trazidas pela pandemia, o direito à educação nunca foi revogado. “Independentemente desse cenário, o direito precisa ser garantido. Os Estados têm de se organizar, identificar quem não teve acesso à educação no ano passado e fazer uma busca ativa para trazê-los de volta”, orienta.
Júlia ressalta a necessidade de esses estudantes serem, a partir de agora, alvo de políticas intersetoriais, capazes de enxergá-los de maneira integral. “Existem questões de desinteresse pela escola devido ao currículo, mas há também o pano de fundo do trabalho infantil, da violência, do viés da saúde, e as diferentes áreas vão ter que lançar esse olhar conjunto para essas crianças e adolescentes, para mantê-los na escola, num ambiente de proteção”, prioriza.
Para Sandra Unbehaum, a falta de informações é um problema. “Para uma melhor análise desse cenário, precisamos das taxas de matrícula de 2020 e deste ano, e esses dados estão em aberto. São esses números que vão nos dar, de fato, o efeito da pandemia no abandono escolar”, avalia.