Tortura e morte de Henry por Jairo Jr. são extremo cruel que resulta da omissão geral
José Nêumanne, O Estado de S.Paulo
A simpatia e os bons modos sociais do vereador carioca Jairo Júnior antes da tortura e morte de Henry Borel, de 4 anos, filho de sua namorada, Monique Medeiros, assim como uma eventual “loucura de monstro”, em nada atenuam as suspeitas do delegado Henrique Damasceno, da 16.ª DP. Seu comportamento anterior à morte do menino ajusta-se ao do nazista julgado em Israel em 1961, como relata Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém: ele é “normal” e seu comportamento, socialmente “desejável”. Os ensaios da filósofa judia, publicados em 1963 pela revista norte-americana The New Yorker, aplicam-se a outro episódio protagonizado pelo ex-filiado ao Partido Solidariedade (terrível ironia!).
Tal fato foi narrado pelo repórter fotográfico Nilton Claudino em texto publicado pela revista Piauí, Minha dor não sai no jornal, em 2011, sob esta linha fina: “Eu era fotógrafo de O Dia, em 2008, quando fui morar numa favela para fazer uma reportagem sobre as milícias. Fui descoberto, torturado e humilhado. Perdi minha mulher, meus filhos, os amigos, a casa, o Rio, o sol, a praia, o futebol, tudo”. Ele, a repórter e o motorista foram delatados por “colegas” da redação do jornal, quando moravam na favela do Batan, em Realengo, sob domínio da milícia à qual é acusado de pertencer o pai do investigado no caso Henry, coronel PM Jairo Souza Santos. Atualmente em prisão domiciliar por causa da covid e de generosa mercê da ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia.
O jornalista registrou que “maconheiros” são justiçados em julgamentos públicos diante da dita comunidade por milicianos. E também a captura da equipe do jornal pelos verdadeiros donos da ordem e da “lei” na periferia do Rio. “Durante a tortura, estávamos lado a lado, eu, a repórter e o motorista. Num quarto escuro, só iluminado por telas de celulares, que usavam para que pudéssemos assistir uns aos outros serem subjugados. O motorista pedia para que eu afastasse escorpiões que subiam por suas costas. Não podia ajudá-lo. Ouvíamos passos de muitos PMs. Tiraram nossos capuzes e substituíram por sacos plásticos, parecidos com os de supermercados. Com eles, produziam asfixiamentos temporários. Mas dava para ver as fardas quando olhava por baixo do plástico.”
O que chamavam de coronel, ou zero-um, tipo de denominação favorita do presidente Jair Bolsonaro para os próprios filhos, deu o veredicto de misericórdia que livrou o trio de “intrusos” da morte. Mas não do opróbrio. O fotógrafo viu-se forçado a separar-se da mulher e dos filhos e viver em esconderijo incerto e não sabido até hoje, 13 anos depois do fato e a dez da publicação de seu testemunho, que não emocionou nenhuma autoridade nem organismos de defesa de direitos humanos. Segundo Claudino, a repórter, não identificada, reconheceu a voz de um vereador que participava das sessões de tortura. Desde então, este foi beneficiado pela anistia dada aos donos das milícias e da política.
Onze anos depois do rapto e a oito da publicação da Piauí, o castelo da impunidade foi reforçado pela reeleição para uma vaga na Câmara Municipal do Rio. Jairo Jr. participou de uma live no Dia da Criança com o então prefeito Marcelo Crivela, e nela declarou: “A gente tem que dar o exemplo e aí isso daí vai levando para nossas gerações, para nossos filhos”, pontificou. Esse discurso desmorona no episódio em que é investigado por tortura e assassinato do indefeso enteado. É que agora encarou uma inesperada muralha de decência contra sua ocultação. O suspeito não desistiu de usar seu poder político. Mas os médicos que constataram o óbito no Hospital Barrador se recusaram a liberar o corpo sem a necessária necropsia do Instituto Médico Legal (IML). E a autoridade responsável por esse órgão público negou-se a liberar o cadáver sem o laudo exigido por lei. O vereador telefonou na madrugada do crime para o governador em exercício, Cláudio Castro, mas este não interferiu. O Partido Solidariedade expulsou-o sumariamente. A Câmara Municipal dá sinais de que poderá cassar-lhe o mandato. A ver.
Certo é que o aviso dado por Hannah Arendt continua valendo para o episódio em si e para todas as manifestações do presidente Jair Bolsonaro e de seu vice Hamilton Mourão a favor de torturas em geral e do torturador Brilhante Ustra em particular. A tortura de qualquer ser humano indefeso, em especial, mas não somente, se for uma criança, e leve ou não a vítima à morte, é crime e covardia indefensáveis para cidadãos “de bem”, ou não, e que professem quaisquer credos religioso ou ideológico. Elogiá-los é a eles se acumpliciarem.
O livro de Hannah Arendt deve nos guiar no bom combate a que se referiu o apóstolo Paulo. Ele ensina que a banalidade do mal é o fenômeno da recusa do caráter humano do homem, alicerçado na negativa da reflexão e na tendência a não assumir a iniciativa própria de seus atos. O ser humano está limitado pela alienação e banalização do mal. No caso não há omissos inocentes. Apenas cúmplices. E ninguém deverá ser poupado, tendo participado por ação, inércia ou omissão.