Coronavírus, cientificismo e o nosso compromisso com a verdade

Por
Marcio Antonio Campos – Gazeta do Povo

| Foto: Jens Schuleter/AFP

Um dos temas mais interessantes da conversa entre Tim Keller e Francis Collins, que mencionei brevemente no meu último texto (e que você pode ver aqui, com legendas gentilmente providenciadas pela Associação Brasileira de Cristãos na Ciência), é a descrença de muitos cristãos em relação ao que a ciência anda dizendo sobre o coronavírus desde que a doença apareceu, o que por sua vez leva à difusão de todo tipo de notícia falsa, para não falar em teorias da conspiração propriamente ditas. O assunto aparece no minuto 26 do vídeo.

Vejam o que diz Tim Keller: o problema não são exatamente os cientistas, mas “as pessoas que chegam tentando defender uma causa em nome da ciência”, tentando dar roupagem científica – o que significaria conceder maior respeitabilidade – a posições que, no fim das contas, são filosóficas, morais ou políticas, e isso não apenas sobre o coronavírus, mas sobre quaisquer outros assuntos (Keller menciona a discussão sobre a existência de Deus). No fundo, é o bom e velho cientificismo em ação, ele diz, aquele tipo particular de arrogância intelectual de que os cristãos já andam tão cansados que começam a suspeitar da ciência de uma forma mais ampla. Ajuda a entender, mas não a desculpar, porque, segundo Keller, não há desculpa para desconfiar a priori da ciência, pois na própria Bíblia há episódios em que Deus faz uso dos meios humanos para atingir seus objetivos. A resposta é tão boa que Collins se limita a endossar tudo e acrescentar algumas observações sobre teorias da conspiração envolvendo vacinas.

Convenhamos, não está fácil navegar no meio dessa confusão toda. Sim, tem o fator político. A OMS foi irresponsável quando o surto apareceu, engolindo com farinha as informações do regime totalitário chinês sobre as dimensões da epidemia e até afirmando não haver indícios de transmissão entre humanos. Continuou pisando na bola quando, por exemplo, listou o acesso ao aborto como “serviço essencial” que não podia ser paralisado durante a pandemia (está na página 4 do PDF, sob o eufemismo “saúde sexual e reprodutiva”). Gestores tomam decisões em sentidos completamente opostos, tudo “embasado na ciência”.

“Deus não nos chama a ser facilmente enganados. Credulidade não é uma virtude cristã”

Ed Stetzer, em seu blog no site da revista Christianity Today


Até mesmo as publicações especializadas estão apanhando; a minha percepção é de que a pressa em ter mais dados sobre o vírus, sobre como ele funciona, sobre como ele pode ser evitado ou eliminado do organismo rebaixou consideravelmente o rigor que costumava ser empregado nas revistas e sites, que vão publicando papers e artigos em velocidade impressionante, e que são imediatamente repercutidos, até que amanhã apareça outro paper e outro artigo que desmintam completamente o anterior, e por aí vai. Um caso absurdo foi o de um artigo publicado no fim de janeiro no New England Journal of Medicine a respeito da transmissão do vírus por pacientes assintomáticos, usando o exemplo dos quatro primeiros contaminados na Alemanha. Acontece que a pessoa que tinha vindo de Xangai estava, sim, com sintomas da Covid-19, mas nenhum dos autores se preocupou em ouvi-la, contentando-se com os relatos dos quatro infectados! E saiu desse jeito não em uma publicação predatória qualquer, mas no NEJM!

Nós sabemos que o conhecimento científico se constrói testando e rejeitando hipóteses, achando dados que derrubam o que parecia certo. Mas no caso do coronavírus estamos vendo a coisa acontecer com transmissão em tempo real para o mundo todo, mas sem todos os cuidados que costumamos ver na pesquisa científica em condições normais de temperatura e pressão, e com a agravante de que agora as pessoas estão simplesmente pegando os estudos que apenas reforçam aquilo que elas já defendem e descartando o que desafia as suas convicções. Ciência boa é aquela que agrada meu viés de confirmação; se não faz isso, aí eu “desconfio da ciência”.


Tem cientificismo, tem informações e estudos contraditórios, tem uso político e ideológico da pandemia. Tudo isso, como diz Tim Keller, pode servir de explicação, mas não de desculpa. É o que também diz (só que pegando um pouco mais pesado) Ed Stetzer em seu blog na Christianity Today: os cristãos somos seguidores da Verdade. Temos um dever moral de não espalhar fake news ou teorias da conspiração. “Deus não nos chama a ser facilmente enganados. Credulidade não é uma virtude cristã”, afirma. Difundir mentiras sobre o coronavírus é desobedecer ao mandamento de Deus sobre levantar falso testemunho; é desmoralizar nossa fé cristã diante dos demais; e é colocar a vida dos outros em risco, diz Stetzer.

É um desafio daqueles. Outro dia um laboratório de Curitiba publicou no Facebook que estava oferecendo testes para detectar anticorpos, identificando a resposta do organismo ao coronavírus, com preço e tudo. Nos comentários, o que mais se perguntava era… quanto custava o exame. Pois é, você olha uma coisa dessas, pensa que são essas pessoas que deveriam estar se preocupando em verificar se as coisas mirabolantes que recebem são mesmo verdade, e apenas desanima. Eu suspeito, pra ser honesto, que o problema é muito mais grave que mera preguiça de conferir as coisas: as pessoas simplesmente já perderam a capacidade de ler algo e se perguntar se é real ou falso. O desconfiômetro quebrou. Recebem e repassam.

Alguns amigos já disseram que, depois que a pandemia passar, deveria haver um “Tribunal de Nuremberg” para apurar todas as barbaridades cometidas nesse período: as mentiras, os acobertamentos, os ataques às liberdades básicas, as pesquisas sem ética, o descaso com a população por parte dos líderes (sim, dos religiosos também)… mas não haverá. Ficará tudo para o Juízo Final mesmo. E pense aí: quando essa hora chegar, o que as pessoas verão? Que você estava do lado da verdade ou que espalhou mentiras, ainda que não de caso pensado, só porque elas fortaleciam a sua narrativa preferida?
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