O título é uma frase do Salman Rushdie que eu roubartilhei para tentar ofender alguém e ser livre.
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Madeleine Lacsko – Gazeta do Povo
| Foto: Pixabay
O artigo é sobre estudantes Justiceiros Sociais que estão querendo a demissão de um professor porque discordam do livro dele. E isso ocorre justo quando ele entra publicamente no debate sobre a lei britânica que pretende enfrentar a cultura do cancelamento nas universidades. Só que eu vou começar com outra figura importante no cenário britânico: Salman Rushdie.
No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, nós acompanhávamos pela TV o drama cinematográfico do romancista autor de “Versos Satânicos”. Muçulmano da Índia, ele vivia na Inglaterra desde os 13 anos de idade, foi criado de forma cosmopolita. Só que os muçulmanos ficaram ofendidíssimos com o livro dele, acharam que debochava da religião. Começaram um cancelamento à moda deles.
Primeiro a Índia proibiu a importação do livro e daí começaram as primeiras ameaças de morte. Vários outros países fizeram proibições semelhantes. Sete mil muçulmanos promoveram um festival de queima do livro “Versos Satânicos” em Bolton, na Inglaterra. Depois de manifestações com mortes no Paquistão e na Cashemira em 1989 é que a coisa piorou mesmo.
O poderosíssimo Aiatolá Khomeini, líder da revolução muçulmana no Irã, emitiu uma fatwa determinando que todos os muçulmanos do mundo se dedicassem à missão de matar todas as pessoas envolvidas com a publicação do livro de Salman Rushdie. Ofereceu também alguns milhões de dólares de recompensa. O escritor teve de viver escondido por anos.
Salman Hushdie tornou-se um ícone mundial de defesa do pensamento livre. Na coletânea de ensaios Imaginary Homeland diz que “sem a liberdade de ofender não há liberdade de expressão”. O pior autoritarismo é o que tenta se disfarçar de virtude. A ideia de criar “espaços seguros” em que seja possível perseguir quem diga algo considerado ofensivo valida o comportamento autoritário.
Parece lógico que evitar determinadas palavras que ofendem seja saudável para a convivência. Realmente é. Se eu te chamar de algo que você não gosta e você me explicar que ficou triste ou simplesmente se irrita, vou procurar não fazer de novo. O que não tem nada de saudável é fingir que se trata disso e fazer outra coisa bem diferente, inventar um padrão do que pode ser dito e perseguir quem ousa questionar. Esse processo deteriora relações humanas, coloca as pessoas em constante tensão e eleva à liderança os mais maldosos.
Numa análise da história de Rushdie para a Areo Magazine, o escritor Daniel James Sharp conclui: “Sempre haverá pessoas que desejam impor seus pontos de vista aos outros e restringir o discurso de que não gostam, assim como sempre haverá pessoas dispostas a apaziguar esses fascistas, mesmo nas questões mais importantes, por uma variedade de razões – por medo covarde de ofensa a simpatia com os bandidos. A acomodação com as forças do ódio é tão inatingível quanto indesejável. A autocensura é suicídio. O fundamentalismo e a mágoa não são justificativas para a supressão da fala. A solidariedade é uma arma poderosa. Os princípios devem ser observados, não abandonados ao menor tremor de problema. E a firmeza é vital se desejamos resistir ao ataque da censura e afirmar os ideais de liberdade, literatura, secularismo, ciência, amor e amizade. Defender alguém sob ataque por princípio – mesmo alguém que não conhecemos pessoalmente – é um ato de amor”.
Gente que melhora o mundo é dura com o sistema e doce com as pessoas. Todos os que vivem de atacar pessoas estão muito bem acomodados no sistema, ainda que falem da boca para fora contra ele. Em muitas universidades está instalado um sistema de seleção de conteúdo feito por quem massacra os discordantes. A desculpa é criar espaços seguros contra ofensas.
Eric Kaufmann, professor de política no Birkbeck College, Universidade de Londres, entrou recentemente no debate público sobre a tentativa de uma lei de Liberdade de Expressão nos campi. A ideia do governo britânico é possibilitar a abertura de processo contra quem cancelar palestras para censurar discursos.
Eu não entendo que a iniciativa possa dar certo e expliquei as razões em um artigo passado, mas também não sei que iniciativa seria a bala de prata. Os professores britânicos tentam discutir o que daria certo e o que poderia ser feito para evitar o cerceamento de ideias, uma realidade atual. Daniel Finkelstein, ex-editor e colunista de The Times, membro da Câmara dos Lordes fez um artigo com uma sugestão.
Para o parlamentar só no debate as coisas se resolvem. A cultura do cancelamento só pode ser enfrentada na conversa. Então Erik Kaufmann fez uma carta ao editor questionando que conversa seria, já que cancelamento é justamente a interdição da conversa. Quanto menos conversa melhor. Questionou? Vai ser patrulhado e, se preciso, cancelado até repetir direitinho o que o grupo mandar. E isso é para o bem.
“Por três anos, acadêmicos críticos da ideologia de gênero argumentaram que o envolvimento de Stonewall (maior organização de defesa dos direitos LGBT do Reino Unido) no setor universitário resultou na repressão da liberdade acadêmica. Esses argumentos foram consistentemente ignorados. Agora, a Essex University publicou um relatório independente sobre as violações da liberdade acadêmica em seu campus, que concluiu que Stonewall havia deturpado a lei e que a universidade deveria reconsiderar seu relacionamento com Stonewall”, argumentou .
A militância pela população trans de Stonewall era feita de forma tão agressiva contra quem tentava entender as teses deles que a própria ONG trocou de presidente e mudou de tese no ano passado. Lançaram a campanha #TransWomenAreWomen, que se tratava mais de esculachar e carimbar como transfóbico quem tentava entender ou apontar distorções. A nova liderança foca em tornar a vida das pessoas trans mais fácil, não em empurrar goela abaixo do Reino Unido as visões de Stonewall sobre gênero.
No final das contas, a liberdade acadêmica para estudar as alegações de militantes sobre gênero fez muita falta nesses anos. O Reino Unido acabou adotando políticas públicas com base no que a militância dizia ser científico. Quem questionava era massacrado sistematicamente na opinião pública. Ano passado, a Suprema Corte descobriu que nunca houve pesquisa conclusiva sobre redesignação sexual em menores de idade e eles não eram acompanhados depois.
Recentemente, Erik Kaufmann lançou um livro chamado Whiteness, que fala sobre o processo de radicalização política e a mudança no padrão étnico da Europa e dos Estados Unidos. A grande maioria branca confiante já se tornou minoria em muitos lugares e a tendência é que nós tenhamos cada vez mais miscigenação. A qualidade humana aproxima mais que a raça, menos para os racistas e para a igreja identitária.
Ele também argumenta que, neste contexto em que brancos são minoria, os interesses deles terão de ser levados em conta na política para evitar uma situação constante de radicalização. Você pode concordar com ele ou discordar dele. Pode até xingar, achar que enlouqueceu ou que previu errado. Direito de todo mundo.
Alunos da Universidade de Londres decidiram demonstrar que Erik Kaufmann estava certo e não tem como acabar com cultura do cancelamento no debate. Resolveram mentir na cara dura, dizendo que o livro dele é de supremacia branca e inventando expressões que seriam “dog whistle” de supremacistas. Claro que ele precisa ser imediatamente calado e demitido e para isso tem um abaixo-assinado. Democratas do bem, né?
O Aiatolá Khomeini precisou derrubar o Xá da Pérsia e impor um regime religioso duríssimo para que lhe fosse reconhecido o poder de perseguir alguém que o ofende. Os censores brasileiros tinham de justificar por escrito as razões de censurar algo e a pessoa censurada ou sancionada tinha o direito de saber a razão. Mesmo assim, ficaram com uma fama terrível e uma imagem que não se tem conserto. Esse pessoal, onde quer que esteja, deve ter uma inveja danada dos canceladores. Não bastasse o trabalho fácil, ainda posam de bonzinhos.
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