Ser liberal é defender a liberdade
*Igor Damous é advogado criminal.
Ser liberal é, necessariamente, defender o não intervencionismo estatal nas relações entre os indivíduos. É pensar que o Estado não tem a função de dizer como as pessoas devem ser ou como devem agir, mas sim de garantir – ou ao menos tentar garantir – a convivência pacífica entre as mesmas para que possam exercer sua liberdade. Em termos mais simples, ser liberal é defender as liberdades políticas, econômicas e sociais dos indivíduos perante o Estado – e assim deve ser, também, na esfera criminal, onde se discute a liberdade em seu sentido mais puro.
Porém, não é o que se vê atualmente no Brasil. Observa-se no país uma crescente demanda de grupos identificados com a “direita” pelo aumento do Estado através da seara penal. A insegurança e o desejo de vingança são fatores que vêm contribuindo para o alargamento do braço mais forte do Estado, desaguando no apoio da população à expansão da legislação penal, flexibilização de leis e garantias processuais penais e na má prestação de serviços no sistema prisional.
Se é função única do Estado o exercício de seu poder coercitivo para a manutenção da segurança de seus cidadãos, qual seria o problema destes fatores? O problema é que o poder coercitivo estatal tem como destinatários os mesmos indivíduos que almeja proteger. Friedrich A. Hayek já alertara anteriormente que segurança, quando perseguida em seu sentido absoluto, representa uma ameaça à liberdade. Assim, quanto maiores os esforços estatais em garantir a segurança dos indivíduos aos quais deveria se submeter, maior a submissão destes ao Estado e, consequentemente, menor sua liberdade.
Em seu aspecto penal, busca-se segurança através i) do aumento de condutas consideradas criminosas, ii) do uso de leis penais que possam abarcar uma quantidade maior de condutas (tipos penais abertos) e iii) do aumento das penas. Tanto a excessiva criminalização de condutas quanto a criação de tipos penais abertos geram dois efeitos importantes na liberdade dos indivíduos: o primeiro deles é a redução da esfera de ações não-puníveis; o segundo é a sensação de ausência de leis penais e impunidade.
A redução da esfera de ações não-puníveis através do excesso de leis penais se dá devido à inversão da máxima “ao indivíduo é permitido tudo aquilo que não for proibido”. Atualmente existem no Brasil 1688 condutas proibidas através do Direito Penal (Código Penal e legislação extravagante). É virtualmente impossível que um indivíduo conheça todas as condutas proibidas e, ainda que conheça, as opções que este possui para viver sua vida sem ser importunado pelo Estado são poucas. Assim, o que era antes o “não proibido” acaba por se tornar o “permitido”.
Já a criação de tipos penais abertos diminui a liberdade dos indivíduos em suas ações devido à insegurança quanto a quais condutas seriam aquelas proibidas. Tipos penais como “gestão temerária de instituições financeiras ” ou “praticar ato obsceno” não possuem uma definição sensível, deixando a cargo do Estado o enquadramento de condutas, podendo este ser ou não extensivo, dependendo da vontade estatal.
O sintoma final de ambas as técnicas legislativas é, no entanto, a sensação de anomia. A anomia, segundo Ralf Dahrendof, pode ser entendida como a sensação de ausência de certeza na aplicação das leis. Quando há tantas leis que regulam o agir dos cidadãos, o valor do direito se esvazia de tal modo que as leis não mais são respeitadas, seja pelos indivíduos, seja pela polícia e/ou pelo sistema judiciário, dando à população a sensação de impunidade.
Para Ludwig von Mises, uma das maiores conquistas do capitalismo foi a contenção do poderio público sobre a vida dos particulares, principalmente aquelas formas de servidão ou escravidão. No plano do Direito Penal, a máxima que define esta garantia dos cidadãos livres contra o Estado se chama ultima ratio, integrante de todo um sistema intitulado Garantismo Penal. Segundo esta, o Estado só pode atuar através do Direito Penal naqueles momentos em que nenhuma outra forma de solução de controvérsias for aplicável e, mesmo assim, com regras rígidas que garantam a liberdade dos cidadãos contra o arbítrio estatal.
Mesmo diante de legislação penal restritiva, com a presença exclusiva de tipos penais bem delineados e que prevejam condutas moralmente condenáveis a nível social, ainda há uma forma de exercício do poder coercitivo do Estado que merece atenção: o processo penal. Enquanto a legislação penal define quais condutas devem ser consideradas crime, a legislação processual penal é aquela incumbida de dizer quais trâmites devem ser seguidos para que o Estado tenha legitimidade para dizer que um indivíduo é responsável por aquela conduta definida como ilícita e consequentemente puni-lo.
Muitos culpam a escassez de instrumentos que habilitem o poder público a punir pela sensação de impunidade. Para solucionar este problema, clamam por i) uma maior agilidade no julgamento das ações penais, ii) a diminuição da exigência probatória, iii) a limitação de instrumentos de impugnação dos atos judiciais, iv) a flexibilização das regras processuais e v) a ampliação do espectro de atuação da prisão processual. No Brasil, por exemplo, o clamor público encontrou eco nas 10 Medidas contra a Corrupção propostas pelo Ministério Público Federal .
Não há muita surpresa em que a população clame por maior supressão das garantias processuais penais diante do sentimento de impunidade. Dahrendof já previra que “uma das misérias da anomia é que ela indica enfermidades na liberdade. Sob o sentimento de anomia cria-se um estado de medo na população, que, por fim, clama por um estado de tirania como remédio ”.
Analisando de maneira simplificada, deve-se, antes de tudo, deixar claro que todos esses aspectos debatidos se tratam de garantias processuais penais, conquistados através dos tempos como formas de contenção ao poder público. A criação de regras processuais, a alta exigência probatória, a criação de instrumentos de impugnação de decisões judiciais (como o habeas corpus ) e a limitação das prisões anteriores à condenação foram implementos legislativos obtidos através da Magna Carta, promulgada pelos barões britânicos descontentes com os desmandos da coroa britânica, movidos pelos ideias liberais vigentes à época .
Da mesma forma, deve-se questionar a elevação da rapidez na solução dos processos criminais como único parâmetro possível. Por óbvio que a demora na solução das controvérsias criminais gera diversos efeitos negativos, como a possibilidade da extinção da punibilidade do crime, a mudança nas situações que ensejariam uma reparação do dano à vítima, entre outras. Porém, não é novidade que, quando se prioriza agilidade necessariamente se faz em detrimento da qualidade e, em se tratando de processo penal, isso quer dizer que menos se interessará pela proximidade entre a decisão judicial e a verdade dos fatos. Nas palavras de Ferrajoli, quanto mais distante um sistema penal se encontra da verdade, mais distante da justiça e consequentemente mais arbitrário será.
De qualquer modo, todas as mudanças aqui dispostas guardam uma característica em comum: aumentam a discricionariedade judicial em detrimento das normas processuais. Há em toda a doutrina liberal recorrentes críticas à submissão de poderes extremos ao juiz técnico, como o que temos no Brasil. Montesquieu, por exemplo, indica que “o poder judiciário não deve ser confiado a um senado permanente, mas sim a pessoas escolhidas dentre o povo, em determinados períodos do ano” – e continua: “é necessário, além disso, que os juízes possuam a mesma condição do acusado, isto é, sejam seus pares, para que ele não possa suspeitar ter caído nas mãos de pessoas propensas a lhe tratar com violência”. Muitos esquecem que o Judiciário é um dos poderes do Estado e que, mesmo que às vezes se insurja contra entes estatais, só pode fazê-lo por fidelidade a mandamentos legais. Sem essa fidelidade legal, o Judiciário não passa de um braço do Estado, talvez o mais forte deles, por ter sob seu controle a interpretação de todo o ordenamento jurídico ao qual deveria se submeter.
Assim, quando se privilegia a atuação de juízes togados em detrimento da legislação penal, o que se defende é a supremacia do Estado sobre o império das leis.
Por último, mas não menos importante, há um enorme equívoco em relação à forma com a qual segmentos da direita veem a punição e o estado do sistema prisional em si. A voz dominante dos grupos identificados com a direita é a de que o delinquente i) deve ser tratado com rigor para que sirva de exemplo para a sociedade, ii) deve ser retirado do convívio social para que não cometa mais crimes e iii) seja reeducado ao convívio social no cárcere. Pode-se intitular tais funções de pena, respectivamente, como i) prevenção geral ii) prevenção especial negativa e iii) prevenção especial positiva.
Primeiramente, todas as funções da pena supracitadas pressupõem um Estado máximo, não respeitador das liberdades individuais e comprometido com o ideal de planejamento e planificação da sociedade. O Estado que ameaça o cidadão com penas excessivas usa o indivíduo como objeto para fins definidos pelo próprio Estado, segundo Hegel e Kant . Um indivíduo não pode ter sua pena condicionada a elementos externos ao próprio ato, como um desejo de intimidação ou uma programação de segurança pública estatal. Não é função de um cidadão suportar qualquer amargura superior àquilo que é responsável para servir a qualquer outro cidadão ou a um interesse estatal (travestido de interesse público), seja como exemplo de como não agir, seja para fins altruísticos.
Em relação ao caráter preventivo especial da pena, tanto em sua vertente negativa quanto em sua vertente positiva, há uma inegável tendência em relacionar a criminalidade a uma patologia social (seja ela social, moral ou natural).
O argumento da ressocialização, ou função preventiva especial positiva da pena, pressupõe a existência de um dever-ser social, uma espécie de indivíduo modelo para o Estado, o qual deverá ser a meta na reeducação do segregado. Essa divisão entre indivíduo desviante que merece educação estatal para se encaixar nos moldes preconizados e membros perfeitamente inseridos nas intenções do Estado é característica basilar de Estados socialistas. Não há nessa função de pena responsabilização do indivíduo por, mediante conduta livre e consciente, cometer condutas consideradas ilícitas pelo Estado. Ou seja, da função ressocializadora da pena, deduz-se que todos os ilícitos cometidos vêm de um problema social, uma falha na prestação estatal em dobrar indivíduos à vontade da sociedade (vontade do Estado), o que será corrigido através da pena. Não há, assim, respeito algum à individualidade ou à livre-escolha dos indivíduos, inexistindo então qualquer resquício de responsabilização .
Ao fim, resta definir qual seria a função da pena em um país tendente a ideais liberais. Ferrajoli indica que o único caráter da pena que pode pertencer ao pensamento liberal é aquela não voltada à máxima utilidade possível na segurança da população, mas sim aquela que busca o mínimo sofrimento necessário àqueles considerados criminosos para que não cometam novos atos. Nestes moldes, a pena somente seria possível após e devido ao cometimento de um delito previamente disposto em lei penal, devendo esta se reduzir à medida exata do crime cometido, que seria aquela equação entre a mínima aflição possível e a necessidade da pena. Neste modelo pertencente ao utilitarismo jurídico, a pena seria aquela pequena parte de liberdade que o indivíduo deixa a cargo do Estado no momento do contrato social, só podendo ser acionada caso este venha a cometer um ilícito. Esta ideia restritiva de pena, que resguarda os direitos do indivíduo perante o Estado, é defendida por Jeremy Bentham, Montesquieu, Voltaire, David Hume, William Blackstone e Wilhem Von Humboldt. De qualquer forma, a certeza da pena em seu caráter retributivo por si só já desestimula àqueles menos propensos a não cometerem crimes, mesmo que não seja essa sua função .
Nas palavras de Ludwig Von Mises, “a era do capitalismo aboliu todos os vestígios da escravidão e da servidão, pôs fim às punições cruéis e reduziu as penas pelos crimes cometidos a um mínimo indispensável para desencorajar os transgressores ”. Esse é o motivo pelo qual não condiz com o pensamento liberal a aceitação (ou até exaltação) das condições precárias do sistema prisional. As penas, estipuladas de forma justa pelo Poder Legislativo, serão sempre injustas quando cumpridas em estabelecimentos prisionais em condição sub-humana. Tanto por questões morais quanto pela existência de um direito fundamental inato de todo ser humano em não ter sua integridade física atacada sem ato anterior seu que o justifique, a tortura, seja ela compreendida em seu sentido estrito ou em todas as formas que se assemelham, não pode ser aceita, muito menos praticada pelo Estado. Nesse sentido que Cesare Beccaria, no Séc. XVIII, um dos grandes autores liberais da história, se insurgira contra as penas cruéis e a tortura que ocorriam em seu tempo.
É natural que, diante do estado de barbárie em que se encontra a sociedade atual, membros não comprometidos com a criminalidade acabem por esperar vingança através do Estado. No entanto, o crescimento do Estado se dá sempre, invariavelmente, através de desejos individuais de proteção de um ente superior. Intervencionismos ocasionais e, após e consequentemente, tirania, são sempre respaldados pelo desejo da sociedade, indivíduo a indivíduo, em obter a segurança em detrimento de suas próprias liberdades. Não há, nesse sentido, nenhuma possibilidade de se chegar a um Estado mínimo se permitimos que o mesmo se coloque contra liberdades individuais embasado em questões subjetivas. Subjetivismo é, antes de tudo, incontrolável.
Imperioso notar, apesar de todo o viés liberal ao qual se submeteram as ponderações anteriores, que todos os pensamentos que foram aqui dispostos se assemelham muito ao dito pelos grupos que se intitulam de esquerda. Isso, no entanto, não deslegitima os argumentos, muito pelo contrário. O liberalismo não é e nem deve ser entendido como um “anti-esquerdismo”. O recurso da eterna dialética, de contrariar o “pensamento burguês” para romper com as bases do sistema, é um instituto pertencente à cosmovisão da esquerda. O liberalismo, no entanto, possui bases bem definidas e não deve ser pervertido com a simples motivação de contrariar o pensamento de esquerda. A liberdade dos indivíduos é um objetivo muito mais nobre.
Além disso, algumas definições devem ser feitas para que se diferencie a tênue, porém extremamente importante, diferença entre o discurso liberal e o discurso de esquerda sobre questões criminais.
A ideologia penal pode ser dividida, de forma bem simplória, em três vertentes: o punitivismo, o garantismo e o abolicionismo. O punitivismo é a crença em que o Estado pode se fazer imperativo na vida dos indivíduos por meio do direito penal e que essa atuação teria capacidade de gerar bons frutos à sociedade. O garantismo é a idéia do Direito Penal Mínimo, onde o Estado não tem legitimidade para agir pretensiosamente sobre as esferas de liberdade dos cidadãos. O abolicionismo é o pensamento segundo o qual não existiriam justificativas ou legitimidade para a intervenção do Estado através da punição .
O punitivismo, apesar de muito defendido por parte da direita brasileira por se identificar com o populismo, é ideário pertencente ao arsenal do Estado máximo e, consequentemente, da esquerda. A ideia de ditadura do proletariado proposta por Karl Marx e Vladimir Lênin não sobreviveria sem um direito penal forte. Já o abolicionismo é uma forma de pensamento pertencente ao ideário coletivista em sua essência, mas, por se tratar de um movimento de redução do poder punitivo do Estado, pode ser subvertido de modo a parecer liberal. No entanto, as diferenças entre o garantismo penal e o abolicionismo são fundamentais .
Apesar de ser fenômeno extremamente complexo, pode-se identificar nas bases do abolicionismo a ideia do “bom selvagem” de Jean Jacques Rosseau, que teria sido, então, pervertido pela sociedade ao estado de conflito no qual se encontra. O abolicionismo seria então o ponto final da evolução social, uma sociedade que, segundo Lênin, pertence aos homens “livres da escravidão capitalista” que “se acostumam, pouco a pouco, a observar as regras elementares da convivência social, sem constrições, sem subordinações, sem aquele especial aparelho de constrição que se chama Estado ”.
Além disso, o abolicionismo possui a função retórica de instrumentalização da sociedade para a consecução dos fins programáticos neomarxistas. Para a maioria dos ditos juristas de esquerda, o direito penal seria um instituto perverso do Estado capitalista, que serve para manter as tradições burguesas através da opressão dos pobres . Dessa forma, criticam-se o direito penal e a superpopulação carcerária quando se fala em punição dos crimes patrimoniais em geral, tráfico de drogas e etc, mas comemora-se o aumento de prisões e punições daqueles pertencentes às “classes dominantes”. Assim, segundo Antonio Gramsci, o direito penal seria inútil aos fins aos quais se presta quando pune indivíduos pobres (afinal, o problema destes seria social), mas cumpriria seu papel “educativo e formativo” em “pôr fim às divisões internas entre dominados ”.
Já o garantismo parte de uma postura mais cética em relação ao poder público e em relação ao ser humano em si. Sob este contexto, a atuação punitiva do Estado seria sim necessária (devido à maldade intrínseca ao ser humano), mas não poderia avançar de forma desenfreada sobre as liberdades dos cidadãos. Assim como o Estado é necessário, o direito penal e o processo penal também seriam. Porém, os últimos dois atuariam como uma restrição aos abusos e desmandos do primeiro.
Apesar de serem tênues as linhas que separam o garantismo do abolicionismo, as funções às quais se propõem se diferenciam em pontos cruciais da ideologia penal. Não se deve ter medo de defender a liberdade pela semelhança dos discursos de ambas as correntes, pois tal diferença reside exatamente nos porquês de serem defendidas e até qual ponto são defendidas. Para o liberalismo penal, ou garantismo, não é porque o direito penal não é necessário em todos os momentos que ele seja dispensável. Não é porque ele é indispensável que seja necessário em todos os momentos.
*Igor Damous é advogado criminal.