Pelo menos cinco ações adotadas na proposta orçamentária apresentam indícios de manobras artificiais para fugir das restrições do teto de gastos; objetivo é garantir um total de R$ 46 bi para obras e outros gastos

Adriana Fernandes, Daniel Weterman e Idiana Tomazelli, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – Em nome de arranjar espaço para mais emendas parlamentares, a contabilidade criativa voltou com força na votação do Orçamento deste ano. O Estadão/Broadcast identificou até agora pelo menos cinco ações adotadas na proposta de Orçamento que apresentam indícios de manobras artificiais para fugir das restrições do teto de gastos, a regra que limita o avanço das despesas à inflação. O objetivo dos parlamentares é garantir um total de R$ 46 bilhões para obras e outros gastos de seu interesse.

A primeira manobra prevê a mudança na forma de pagamento do auxílio-doença. Hoje, o benefício é pago pelo INSS, mas o relator do Orçamento, senador Marcio Bittar (MDB-AC), desenterrou uma proposta de repassar a responsabilidade às empresas, que recuperariam o valor abatendo sobre os tributos devidos. A medida abriria um espaço de ao menos R$ 4 bilhões no teto, mas o valor pode chegar a R$ 5 bilhões.

A proposta é apontada por técnicos experientes da área orçamentária como uma “pedalada” para burlar o teto, já que o Orçamento foi enviado com as despesas no limite, sem espaço para os congressistas remanejarem recursos para as ações que gostariam de apadrinhar.

Comissão Mista
Texto de Marcio Bittar tem várias manobras para fugir do teto de gastos. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Para evitar a pedalada, a recomendação técnica é que a mudança no pagamento do auxílio-doença seja acompanhada por um ajuste retroativo no próprio teto de gastos, para consertar a “quebra da cadeia”. Na prática, isso implicaria retirar os gastos com o benefício do valor que serviu de base para o cálculo do teto em 2016, quando a emenda constitucional que criou o limite foi aprovada. A despesa ficaria menor, e o teto também. Um movimento semelhante foi feito com o Fies, o programa de financiamento para alunos do ensino superior.

O atropelo na votação do projeto, aprovado na Comissão Mista de Orçamento (CMO) sem tempo para aprofundar o debate, fez com que os parlamentares aprovassem uma proposta de elevação das emendas com base em uma mudança ainda não aprovada no mecanismo do auxílio-doença. Na prática, o espaço para essas despesas não existe até o momento. Polêmica, a alteração já foi tentada no passado pelo Congresso, mas tem oposição do grupo mais fiscalista do Ministério da Economia.

Bittar também melhorou o resultado da Previdência com base em ações ainda não aprovadas e cálculos desconhecidos. Ele cancelou R$ 13 bilhões em despesas que são obrigatórias. Desse valor, R$ 5 bilhões seriam pagamentos de benefícios do INSS que, segundo ele, serão revertidos a partir de uma Medida Provisória com ações antifraude – que sequer foi editada e, portanto, não está em vigência.

A terceira manobra é o corte de despesas com o pagamento de subsídios do Pronaf, voltado à agricultura familiar. Após a condenação das “pedaladas fiscais” no governo Dilma Rousseff, o entendimento conjunto firmado com Tribunal de Contas da União (TCU) e Controladoria-Geral da União é o de que é preciso ter orçamento integral para pagar as despesas de subsídios na hora de aprovação da operação de crédito. Mesmo que o dinheiro destinado ao subsídio sobre ao final do ano, a aprovação do crédito depende da existência do orçamento para todo o ano, inclusive para bancar as despesas que ficam para períodos seguintes (os chamados restos a pagar). Por isso, o corte é visto com preocupação.

Outra manobra é a decisão do Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (Codefat) de adiar o calendário do abono salarial, benefício pago a trabalhadores com carteira que ganham até dois salários mínimos. A medida liberou R$ 7,4 bilhões dentro do Orçamento de 2021, valores que foram totalmente abocanhados pelos parlamentares na distribuição das emendas.

A mudança no abono foi feita por recomendação da CGU, que viu problemas na forma de empenho da despesa (metade em um ano, metade em outro), dado que o calendário de pagamentos vai de julho a junho. A CGU orientou o governo a empenhar tudo no ano do reconhecimento do direito do trabalhador, o que obrigaria a equipe econômica a destinar agora R$ 20 bilhões à próxima rodada do benefício – R$ 12,7 bilhões a mais que o previsto.

Sem espaço no teto, o governo convocou reunião de emergência do Codefat e aprovou o adiamento. Técnicos de dentro e de fora do governo, porém, viram a manobra como a “pedalada clássica”: a postergação de uma despesa para trazer um alívio momentâneo, resultando em uma maquiagem das contas.

Há a preocupação inclusive com o custo desse adiamento. No calendário anterior, o governo pagaria a metade dos beneficiários o salário mínimo atual (R$ 1.100), e a outra metade receberia o valor previsto para 2022 (R$ 1.147). Como agora todos receberão no ano que vem, o governo gastará R$ 47 a mais com cerca de 11,5 milhões de trabalhadores.

Por último, a revisão para baixo nos gastos com seguro-desemprego (R$ 2,6 bilhões) é vista com grande desconfiança, sobretudo em um quadro de agravamento da pandemia de covid-19 e de piora da atividade econômica. A avaliação de técnicos é que a previsão desses gastos foi subestimada com base em informações do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), que teve metodologia alterada e tem sido alvo de críticas que apontam subnotificação de demissões pelas empresas.

Veja como fica:

  1. Mudança na forma de pagamento do auxílio-doença, que passaria às empresas, para abrir um espaço de ao menos R$ 4 bilhões no teto de gastos. Medida foi chamada de pedalada pelos próprios técnicos do Ministério da Economia.
  2. Corte de R$ 13,5 bilhões nas projeções de gastos do INSS com base em ações ainda não aprovadas  (uma Medida Provisória antifraude) e cálculos desconhecidos. Medida ignora previsões dos consultores legislativos e da equipe econômica de que era preciso ampliar em R$ 8,4 bilhões a previsão de gastos por causa do impacto do salário mínimo nos benefícios.
  3. Corte de despesas com o pagamento de subsídios do Pronaf, voltado ao financiamento da agricultura familiar. Operações de crédito com subsídios do Tesouro Nacional só podem ser feitas quando há orçamento integral para o pagamento desses subsídios. Prática contrária já foi condenada pelo TCU no Programa de Sustentação do Investimento (PSI) e no Programa de Financiamento às Exportações (Proex).
  4. Corte de R$ 2,6 bilhões na previsão de gastos com seguro-desemprego, em plena retração econômica e sob risco de aumento de demissões. Técnicos questionam projeção com base no Caged, que tem sido alvo de críticas que apontam suspeita de subnotificação das demissões.
  5. Adiamento para 2022 do pagamento do abono salarial devido a quem trabalhou com carteira assinada em 2020, ganhando até dois salários mínimos. Medida liberou R$ 7,4 bilhões no Orçamento de 2021, mas apenas de forma contábil, porque o compromisso da despesa continua existindo.

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