José Renato Nalini* – Jornal Estadão

José Renato Nalini. FOTO: ALEX SILVA/ESTADÃO

Não é invenção brasileira. Mas já tem sido invocado e chegou ao STF. A situação em que o pacto fundamental não está sendo cumprido, ao menos conforme deveria sê-lo.

Depois de mais de cinquenta anos de atividade no sistema justiça, incluídos os cinco anos do Bacharelado, alguns concomitantes com a pós-graduação e exercício profissional e desde 1969 a exercer o Magistério, não me recordo de outro período em que o fenômeno da generalizada inconstitucionalidade estivesse tão evidente.

Inicie-se pelo preâmbulo. O constituinte pretendeu instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Os direitos sociais estão em frangalhos. Precisa invocar a saúde? E a moradia? E a educação?

Sociedade fraterna, com o odiômetro à toda, a guerra de narrativas, as injúrias, ofensas e difamações inflacionando as redes sociais? Pluralismo, em que opinião diversa é considerada herética e quem pensa diferente é inimigo mortal? Sem preconceitos? O Brasil não é preconceituoso?

O preâmbulo fala em “solução pacífica das controvérsias” e o armamento da população é um convite à guerra civil. E há menção à “solução pacífica dos conflitos” no artigo 4º, inciso VII, enquanto se multiplica o número de armas de fogo, em nefasto mimetismo ao hábito norte-americano que causa tantas tragédias em solo ianque.

Os princípios fundamentais do artigo 1º deixam muito a desejar. Cidadania é o direito a ter direitos, na clássica visão de Hannah Arendt. Os brasileiros têm conseguido exercer em plenitude os seus direitos? A pandemia serviu para escancarar os milhões de “não cidadãos”: os invisíveis, os desvalidos, os informais, os desempregados, os sem teto, os sem esperança e sem perspectiva.

A dignidade da pessoa humana não está comprometida, com os brasileiros morrendo sem leito de UTI, sem vacinação no ritmo compatível com a necessidade de debelar a peste? Qual a dignidade de quem não tem emprego e não tem auxílio emergencial, testemunho da incúria do Estado?

Seria interessante prestigiar os valores sociais do trabalho, houvera trabalho para todos os nacionais. Quantos são os desprovidos desse “fundamento” do Estado Democrático de Direito?

Pluralismo político? Outra vez, o desrespeito pela postura que não mimetize aquela hegemonia, a ressurreição do conceito de amigo/inimigo de Carl Schmitt, (1888-1985), algo que serviu para pavimentar o curso nazi rumo à eliminação dos judeus.

Como é que todo o poder emana do povo, se a população desacredita da Democracia Representativa e não há sinal de que possa experimentar uma Democracia Participativa?

Os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil não parecem merecer especial empenho por parte do Estado. Construir uma sociedade livre, justa e solidária. Formalmente livre, é certo. Mas justa e solidária? Onde a justiça social, onde a solidariedade que, no preâmbulo, o constituinte qualificou de “fraterna”?

Garantir o desenvolvimento nacional. Que desenvolvimento? O único nome para o progresso é o progresso moral. E desenvolvimento hoje é sustentável. O que significa tutelar a natureza e não devasta-la, como se ordenou com a alusão a “soltar a boiada”, para o desmanche das estruturas protetivas, incentivo ao desmatamento, aos incêndios, à ocupação de terras públicas sem indenização e com expulsão dos indígenas das áreas demarcadas.

Enquanto o mundo leva a sério a tríade ESG, de Desenvolvimento, Social e Governança, na sigla em inglês, o Brasil dá mostras de um calamitoso retrocesso na trilha ecológica perseguida desde a década de setenta. Como se pode pensar em “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, se há protecionismo para alguns segmentos e abandono da maioria?

Enfim, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” é um objetivo fundamental que parece ficção. Pois há toda espécie de preconceitos, inclusive incentivados, além de múltiplas maneiras de discriminar brasileiros.

Se todos os dispositivos da Constituição merecerem serena análise, não será difícil chegar à conclusão de que se existe mesmo essa figura do “estado de coisas inconstitucional”, mostraremos ao mundo como é que ele se manifesta.

Será que o Supremo Tribunal Federal, envolvido com os milhares de processos tópicos, casuísticos, com as infinitas repercussões gerais, com a tarefa de Justiça Criminal singular e de Segunda Instância dos Juizados Especiais, terá condições de uma análise a respeito de tal situação? Ou se resignará a dizer que só age quando provocado e que formulações exóticas cedem lugar à realidade formal, tão a gosto do Judiciário brasileiro?

*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras – 2021-202

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