Cyberespaço
Por
Madeleine Lacsko – Gazeta do Povo
| Foto: Unsplash / Reprodução
Preciso começar respondendo a pergunta: quem são os gamers? Quase todo mundo. É gente de todas as idades, países, classes sociais, ideologias e religiões. Estima-se que há 2 bilhões e 700 milhões de gamers no mundo. Eu tenho um em casa e você deve ter também. Ano passado, a indústria de games faturou US$ 179 bilhões, mais que a combinação de Hollywood com a indústria esportiva dos EUA.
O que vemos ser chamado de “gamer” é uma visão estereotipada, que tem como base os grupos sociais vistos como mais fanáticos por videogame. Conheço senhoras de tailleur mais fanáticas e dedicadas, mas a ideia de “gamer” está no nosso imaginário, é algo parecido com a nossa sensação diante da palavra YouTubber. Sabemos racionalmente que é gente de todo tipo, mas formamos um estereótipo.
É justamente nesse estereótipo do gamer que estão interessadas a grande mídia e tudo quanto é político, não nos gamers em si. Talvez imaginem que podem atrair a pujança e a abundância de uma indústria que só cresce inserindo games de qualquer forma tosca no contexto. Às vezes dá certo.
Foi o caso do Gamergate, nos Estados Unidos. Já havia uma confusão enorme entre os gamers mais badalados, produtores de jogos, jornalistas de games e streamers. Ao resolver apoiar com seu Breitbart News o lado dos gamers, e não das mulheres atacadas, ganhou aderência política no grupo.
A vantagem de ter apoio dos gamers mais badalados, seja na política ou na mídia, é que eles sabem como funciona a internet e o poder psicológico da manipulação online. Desde o Gamergate até hoje, as técnicas para subjugar a vontade e a pauta dos grandes formadores de opinião é a mesma. Funciona há 8 anos e continuará funcionando porque o mainstream subestima a inteligência e o poder dos gamers.
Sou da época em que se fazia a discussão arcaica sobre a relação entre games violentos e comportamentos violentos. Muita coisa mudou. Antes, a gente jogava só ou com pessoas no mesmo aparelho. Hoje, é possível formar comunidades enormes e jogar junto com diversas pessoas ao redor do mundo. O balanço entre socialização e dedicação aos games passou a ser a baliza da sanidade.
Gamers que já têm uma vida social satisfatória, gostam dos jogos e querem conhecer mais pessoas tendem a ter melhora na sociabilidade, cognição, rapidez de raciocínio e coordenação motora. Isso com qualquer jogo. O problema está nas pessoas que precisam do estilo de vida que a sociedade estereotipou como gamer para construir sua identidade social. Conseguirão criar uma persona e viver essa fantasia o tempo todo.
Agora também estamos diante de uma questão geracional. O universo gamer une, em fóruns fechados, adultos e crianças. Como proteger as crianças? Hoje, a idade média do gamer é 34 anos. Os maiores de 50 anos são 26% do público e os menores de 18 anos são 25%. Ocorre que, entre crianças e adolescentes, 97% jogam frequentemente e o tempo de uso de games é maior.
Videogames são armas poderosas, não são brinquedos. Foram criados inicialmente para dessensibilizar soldados que seriam mandados à II Guerra Mundial. Os jogos preferidos das crianças são aqueles que conectam o grupo todo e possibilitam vivências em que eles formam times ou equipes. Brincam juntos e resolvem conflitos entre si, o que foi excelente para a socialização durante a pandemia.
A abordagem das crianças sobre os games é diferente porque trata-se da primeira geração genuinamente digital, que enxerga o cyberespaço como parte da vida, não como universo à parte. É um recurso para socializar com os amigos, desafiar-se e divertir-se em qualquer hora e lugar. Os problemas estão em quem tem toda sua vida, socialização e identidade girando em torno do universo gamer. São os que fazem o caminho inverso, começam nos games e vêem a vida como auxiliar.
Adultos e crianças já estão no mesmo espaço na vida real. Minha geração sumia de manhã para brincar na rua sem celular. Agora é a mesma coisa, mas sem altercações físicas e joelhos ralados. A turma está junta no game e os pais não fazem a menor ideia de onde eles estão nem o que estão fazendo. É saudável e normal do crescimento. O problema sempre foi quando um adulto desconhecido quer se enfiar no grupo de crianças sem autorização dos pais. Continua sendo.
A diferença é que a minha geração sabia muito bem o que dava status e poder para adultos e como eles podem manipular as crianças. A nossa enfrenta um desafio complicado. Não compreendemos quem são os adultos cuja vida e identidade foram construídas em torno da vivência gamer. É muito diferente de jogar e até de jogar muito e ser apaixonado, é de só entender o próprio valor humano neste universo.
Crianças amam games porque é a possibilidade de brincar e interagir o tempo todo com os amigos. Quase todos jogam e é sinônimo de socialização. Já os adultos que adotam o estereótipo do gamer como identidade são justamente esses apontados como mais provavelmente problemáticos. O que acontece quando damos poder a esses adultos no mundo real, com base naquilo que representam no universo gamer?
O SBT criou recentemente um programa com gamers. Jair Bolsonaro tem seus gamers. Depois Boulos também. Agora Lula e Ciro terão seus gamers de estimação. Todos são adultos e não é possível saber o que farão tendo poder sobre crianças. Já vi um pregando assassinato de adversários políticos. Agora surgiu o que usa o poder para abusar sexualmente de menores.
O influenciador de Fortnite Raulzito já tinha status neste nicho específico, dos gamers e streamers. Ganhou a chance de brilhar no mainstream e transformou isso em poder. Segundo denúncias feitas por várias mães à Polícia Civil de Santa Catarina, a fama facilitava sua aproximação de atores mirins com idades entre 10 e 14 anos. Ele prometia que iriam trabalhar na televisão como desculpa para aproximar-se deles. Está preso inicialmente por 30 dias.
Em janeiro deste ano, aconteceu algo parecido com o time de LoL do Flamengo Sports. Guilherme “Kake” Braga foi banido após acusações de assédio sexual. No mesmo dia, outra estrela do LoL, Gabriel “MiT” Souza também foi acusado da mesma prática, caso que é debatido na Justiça até hoje.
Foi um 5 de janeiro inesquecível para os gamers. Houve ainda mais uma acusação, essa envolvendo algo que pode acontecer em todas as melhores famílias. Uma moça de 16 anos relatou que um gamer famoso e maior de idade teve conversas sexuais com ela quanto tinha 15. Giselle Esquina postou as conversas que teve com Filipe “pancc” Martins.
Sabe aquelas histórias que a gente sempre ouviu de famoso utilizando o poder que tem para seduzir menores que nem imaginam tratar-se de um abuso? Isso pode entrar em casa agora. Estamos preparados para proteger as crianças ou ainda temos uma mentalidade analógica que não enxerga esse problema? Segundo o Conselho de Direitos Humanos da ONU, é preciso avançar muito ainda.
Hoje, a identidade de uma pessoa começa a ser construída quando a gente compartilha a foto do bebê após o parto. Pode ser com a família, pode ser com o mundo todo. Temos de começar a pensar na importância da privacidade e da preservação da imagem das crianças. Não são elas quem optam pela exposição, isso é feito por quem deveria resguardá-las.
Longe de mim condenar quem quer mostrar seu bebê maravilhoso para todo o mundo. Eu sei como é ser mãe, dá a impressão de que ninguém nunca teve filho antes. Ocorre que estamos diante de um mundo cuja lógica de relacionamentos e memórias é regida por uma tecnologia ainda nova para nós. Precisamos pensar no impacto das nossas ações na construção da história dos nossos filhos. Hoje, tudo se constrói também online.
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