Editorial
Por
Gazeta do Povo

| Foto: Dorivan Marinho/SCO/STF


Se é verdade que a liberdade de expressão já viveu dias piores no Brasil, os tempos atuais também são bastante desafiadores. Estamos diante de um apagão doutrinal sem precedentes quanto à sua importância e à sua natureza, o que se torna especialmente grave dado o status especial da liberdade de expressão entre as liberdades, tão íntima é sua ligação com a democracia – onde falta esta, aquela é uma das primeiras a desaparecer; onde falta aquela, não se pode mais falar na presença desta. Decisões recentes que atentam claramente contra a liberdade de expressão – pois não falamos de questões sobre as quais pairavam relevantes dúvidas doutrinais ou sobre as quais faltasse um razoável consenso entre os juristas, mas de situações cujo caráter abusivo é cristalino – estão sendo tomadas com a conivência de um sem-número de atores políticos e sociais que sempre se posicionaram incondicionalmente a favor dessa liberdade – até agora. Um clima de regime de exceção extremamente perigoso, que exige, mais do que nunca, recordar onde se pode traçar a linha que separa o lícito do ilícito, e como proceder nos casos em que a liberdade de expressão é de fato abusada.

Diz a Constituição Federal, em seu artigo 5.º, que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” e “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Há, portanto, uma regra geral, que é a da ampla liberdade, mas que, obviamente, não é absoluta. As restrições têm de ser necessariamente pontuais e previstas implícita ou explicitamente na Constituição, enquanto a legislação infraconstitucional (como, por exemplo, os códigos Penal e Civil) detalha e torna operacionalizáveis essas restrições. Um dos limites à liberdade de expressão, por exemplo, está no respeito a bens personalíssimos, como a honra, a privacidade e a imagem. Outro limite é a proibição do racismo, exemplo paradigmático de atentado à dignidade humana. Da mesma forma, o Brasil proíbe a apologia ao crime – como forma de respeito à lei penal e, em última instância, à vontade popular –, e mais algumas poucas condutas. E é bom que seja assim. São todas restrições bastante razoáveis, pontuais e claramente delineadas.

No entanto, assim como um apagão energético não se resume a um blecaute pontual, o “apagão doutrinal” a respeito da liberdade de expressão também é generalizado. É conceitual e formal. Conceitual, porque perdeu-se completamente a noção desses limites e até mesmo da diferenciação necessária entre os diversos tipos de manifestação. Sob o argumento correto de que “a liberdade de expressão não é absoluta”, as manifestações abusivas – pois elas existem – estão sendo coibidas ao lado de outras que são claramente lícitas e de um pequeno conjunto sobre o qual poderia haver dúvidas, dependendo de um escrutínio judicial mais apurado. E, tanto naqueles casos em que a manifestação é, de fato, ilícita (incitação à prática de crimes, atentados a direitos personalíssimos, etc.), quanto nos casos em que o Judiciário implantou o “crime de opinião”, a repressão passou a ser feita sem o respeito ao devido processo legal, ao princípio do juiz natural, ao amplo contraditório, ao princípio do in dubio pro libertate, caracterizando o apagão formal de que falávamos. Um punhado de maus exemplos que começaram justamente na instituição que deveria ser a guardiã da Constituição e das liberdades e garantias individuais, o Supremo Tribunal Federal, e se espalha por outros tribunais superiores e instâncias políticas.

Sob o argumento correto de que “a liberdade de expressão não é absoluta”, as manifestações abusivas – pois elas existem – estão sendo coibidas ao lado de outras que são claramente lícitas e de um pequeno conjunto sobre o qual poderia haver dúvidas, dependendo de um escrutínio judicial mais apurado

Quanto aos erros conceituais, é surpreendente a incapacidade de distinguir entre narração de fatos, de um lado, e liberdade de opinião (crítica) e exposição de ideias, de outro – uma distinção fundamental para a correta qualificação jurídica dos eventuais abusos. Quando se está diante de opiniões e exposições de ideias, nunca cabe ao Judiciário julgar acerca de sua veracidade ou falsidade, correção ou incorreção. Não cabe ao Judiciário, por exemplo, dar a palavra final sobre temas científicos, históricos ou artísticos; a Justiça não é nem nunca será o árbitro final da ciência ou da história. Toda a tradição do Ocidente é a de não deixar que esses temas sejam dirimidos por juízes, mas por outras instâncias, como cada indivíduo isoladamente, veículos de comunicação, academias, associações, etc., nunca com poder de proibir, censurar ou responsabilizar. Quando o ministro do STF Luís Roberto Barroso, que também é presidente do TSE, afirma que “a difusão da desinformação, incentivando (…) posições anticientíficas, que levam à morte, isso não é neutro, não é protegido pela liberdade de expressão”, equivoca-se totalmente, demonstra desconhecer os princípios que regem a liberdade de expressão e se coloca no papel de árbitro de discussões científicas, ignorando completamente a própria natureza da construção do conhecimento, pois o que é “científico” hoje nem sempre o foi, e parte do que hoje é considerado “anticientífico” já foi consenso entre as mentes mais brilhantes do passado. De uma forma ou de outra, certo ou errado, não é o Judiciário o árbitro dessas questões.

Nesta mesma linha, não faz sentido utilizar-se a expressão “fake news” com referência a opiniões críticas e exposição de ideias. Tornou-se, no entanto, corrente utilizar essa expressão – pela carga pejorativa que traz, e que a rigor deveria reservar-se apenas a narrações de fatos falsas – contra opiniões ou ideias das quais se discorde, o que é absurdo. Não dizemos com isso, que fique claro, que opiniões e ideias sejam sempre lícitas. Podem configurar eventualmente ilícitos de injúria, injúria racial, injúria qualificada, racismo, vilipêndio de ato ou objeto religioso, propaganda, incitação e apologia de crimes ou criminosos, hipóteses previstas como abusivas na lei brasileira, mas para cuja constatação nunca se requer uma aferição de sua veracidade (um exemplo seria o de alguém que chama outra pessoa de “canalha”; o Judiciário não avalia se o ofendido realmente é o que se diz dele, mas se a afirmação constitui ofensa punível pela lei). O Brasil não criminalizou nem mesmo a defesa de ideias contrárias à democracia. Até poderia fazê-lo, e a discussão sobre a “tolerância aos intolerantes” já rendeu inúmeras páginas do melhor debate acadêmico e político. Mas o legislador brasileiro optou por crer que a democracia é mais forte quando permite que mesmo ideias totalitárias (como algumas defendidas por partidos de esquerda) sejam toleradas.

Surpreende também, dentro da liberdade de opinião, a incapacidade de distinguir entre injúria e crítica legítima. Fora das hipóteses do insulto puro e simples (que configuram a injúria), a crítica inspirada pelo interesse público a instituições, a pessoas públicas e até a nações é totalmente lícita no direito brasileiro, por mais dura que seja, e por mais infeliz que possa eventualmente parecer a qualquer um de nós. Há situações em que é difícil distinguir uma coisa de outra? Sim, e precisamente por isso jamais poderia o próprio criticado ser o juiz de tais expressões. É inaceitável que um ministro do STF julgue as críticas a si mesmo e à instituição a que pertence, pelo risco evidente de perder qualquer objetividade em distinguir o que é injúria do que é crítica incisiva inspirada pelo interesse público.


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By valeon

372 thoughts on “O apagão da liberdade de expressão no Brasil”
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