Reformas
Por
Luan Sperandio, especial para a Gazeta do Povo

movimentos dos caminhoneiros – paralisação dos motoristas de caminhão – protesto caminhoneiros – movimentação de motoristas no Posto Cupim em Campina Grande do Sul nas margens da BR 116, km 67. exército e policia rodoviaria federal – soldados do exército nas margens da rodovia fazendo patrulhamento

O governo promete medidas para atender a categoria dos caminhoneiros, que foi atingida pelo aumento do preço dos combustíveis| Foto: Gazeta do Povo

Os caminhoneiros anunciaram uma paralisação para esta segunda-feira, dia 1º de novembro, mas o dia transcorreu normalmente. Foi mais uma tentativa de movimento da categoria, que já tentou deflagrar mais de uma dezena de bloqueios similares ao de maio de 2018 apenas neste ano. Os mais fortes ocorreram em 1º de fevereiro, com mais de 40 tentativas de piquetes em estradas do país. Os motivos são vários, desde a alta dos preços dos combustíveis ao valor do frete.

Desde o início do ano, o preço do diesel subiu mais de 60% nas refinarias da Petrobras, segundo dados da própria estatal – foram quase 10% de alta apenas na semana que passou. E 37% nos postos, na média nacional, de acordo com levantamentos da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

A alta está relacionada ao fato dos preços do barril de petróleo serem os maiores desde 2014, além da desvalorização do Real frente ao Dólar em virtude principalmente da diferença de taxa de juros reais.

O governo monitora a situação e promete medidas para atender a categoria. Entre elas, a revisão da cobrança de ICMS dos combustíveis (em projeto encaminhado que já foi aprovado na Câmara e tramita no Senado), e a promessa do auxílio diesel de R$ 400.

Mas isso resolverá de forma efetiva o problema dos caminhoneiros ou apenas um paliativo? É possível a resolução do problema de forma definitiva?

A origem do problema
O problema dos custos do frete vão além do preço do combustível, podendo se resumir na famosa lei da oferta e demanda, e há digitais de intervenção estatal no “crime”.

Houve expansão da frota, acelerada artificialmente por uma política de incentivos do BNDES entre 2009 e 2016. Estudo do consultor Ricardo Gallo estimou que o número de caminhões no Brasil cresceu a uma taxa de 5% ao ano entre 2009 e 2016, ampliando a frota para cerca de 2 milhões de caminhões.

Em paralelo, a economia brasileira cresceu, em média, 1,1% ao ano. Em virtude disso, a consultoria NTC & Logística, entidade que reúne as transportadoras, projeta que há um excedente de 300 mil caminhões na frota nacional.

Portanto, de um lado, houve o estímulo da expansão da oferta de caminhões e o aumento do preço com o tabelamento do frete a partir de 2018. Por outro, o baixo desempenho da economia fez com que a demanda diminuísse.

“Isso gerou uma distorção significativa quando a economia se desaqueceu. É difícil imaginar, então, que essa situação será resolvida de forma duradoura sem uma retomada econômica robusta”, afirma Gabriel Brasil, analista de risco político da Control Risks.

“A melhor solução de médio prazo, então, é a mesma para os problemas de outros setores da economia: a implementação de reformas econômicas abrangentes e bem desenhadas somada a uma maior estabilidade política que recuperem a confiança dos investidores para que o Brasil volte a crescer em ritmo compatível com seus desafios sociais”, defende.

Poder político
De uma forma direta, os caminhoneiros buscam fazer movimentos de greve porque a pressão política sobre o governo pode beneficiar a categoria, seja por maior subsídio, seja em eventual mudança em políticas públicas ou formação de preços do diesel.

Gabriel Brasil aponta que, a partir de 2018, a categoria percebeu que tem um “grande potencial de disrupção”, o que passou a incentivar o movimento. “Eles se tornaram mais incisivos em suas demandas desde então. Esse cenário piorou com a entrada de um governo que apoiou, no passado, a greve dos caminhoneiros — e que se tornou, então, refém em boa medida da sua pressão. Há pouca legitimidade por parte do atual presidente para negociar de forma efetiva com a categoria, dada sua dependência — inclusive eleitoral, em certa medida — com relação a esse grupo”, afirma.

Privatização da Petrobras
Cristiano Oliveira, doutor em Economia e professor da Universidade Federal do Rio Grande, afirma que é necessário “privatizar a Petrobras e inviabilizar a capacidade de o governo criar preços subsidiados para quem quer que seja.”

“É rent seeking puro. O que tivemos em 2018 não foi uma greve puramente, foi também um locaute, pois quando o movimento teve um grande impacto, precisou das transportadoras. É preciso enfraquecer esses grupos”, explica.

Marcos Mendes, doutor em economia e pesquisador do Insper, concorda. “Para baixar o nível dos preços, é preciso estimular a concorrência em toda a cadeia produtiva, desde o refino até o ponto de consumo, eliminando regulações e práticas comerciais que geram poder de mercado para as empresas”, diz.

Para ele, as medidas incluem “acabar com a posição monopolista da Petrobras no refino, eliminar relações contratuais obrigatórias entre distribuidoras e pontos de venda, revogar a proibição de engarrafamento de GLP por empresas que não produzem o botijão, rever políticas de estoques mínimos obrigatórios e de proibição de importação de combustíveis por alguns elos da cadeia produtiva”.

Em meados de outubro, o presidente Jair Bolsonaro ventilou a possibilidade de pedir para a equipe econômica iniciar estudos para a privatização da empresa, mas sem detalhar como seria a medida. Na semana passada, em sua live, criticou o lucro reportado pela companhia, afirmando que “a Petrobras tem que ser uma empresa que não dê um lucro muito alto como tem dado”.

Eventual medida precisaria passar pelo Congresso Nacional. Em resposta, o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG) disse à época que “não enxerga ser esse o momento mais adequado para discutir a privatização da Petrobras”.

“O problema do preço de combustível envolve sobretudo estabilidade. O Brasil precisa de estabilidade, inclusive estabilidade política. Todo mundo que está propondo soluções, as mais diversas, poderiam contribuir com a estabilidade”, desconversou.

Descentralização de modais de transporte
Cristiano defende que vencer “essa queda de braço” é difícil, mas é preciso enfraquecer os grupos. “Votar a BR do Mar no Senado já ajudaria”.

O projeto promove mudanças regulatórias que auxiliam no estímulo de cabotagem e transporte marítimo. Segundo o governo, pode reduzir o chamado Custo Brasil em R$ 3 bilhões.

Já o PLS 261/2018, denominado o Marco Legal das Ferrovias, é apontado como fator para desenvolvimento da malha ferroviária brasileira. Ela abre a possibilidade de que o setor privado possa explorar e ampliar a rede ferroviária por meio de autorizações ou construção de vias privadas, contribuindo para descentralizar o modal rodoviário.

Diante da tramitação do projeto, foram protocolados 14 pedidos de novos projetos de ferrovias privadas, totalizando R$ 80 bilhões em investimentos para a construção de pouco mais de 5 mil km.

“Uma evidência [de que esses projetos podem enfraquecer a categoria] é a própria oposição dos caminhoneiros. No entanto, não se trata de uma solução com impacto no curto prazo”, analisa Gabriel Brasil.

Após o movimento de 2018, em apenas um ano houve aumento de 15% da utilização de cabotagem e de 18% na utilização de transporte ferroviário para contêineres. Além disso, diversas companhias que antes terceirizaram a distribuição para caminhoneiros autônomos passaram a fazer transporte “in house”, criando uma área de logística para contribuir com a atividade fim da empresa com menor dependência da categoria.

“O movimento deflagrado foi um tiro no pé dos caminhoneiros autônomos, pois diminuiu o próprio mercado onde eles atuam”, avalia Cristiano Oliveira.

Mudanças na cobrança de ICMS
A advogada tributarista Maria Carolina Gontijo é cética sobre a efetividade da medida. Ela explica que a problemática dos combustíveis foi agravada no cenário de aumento de inflação porque gera um efeito em cascata: a inflação aumenta o preço médio ponderado ao consumidor final (PMPF), que por sua vez aumenta o ICMS, que aumenta novamente o PMPF.

“O projeto estabelece a incidência de alíquota do ICMS com base no preço do combustível médio dos últimos dois anos, mas este é um período muito grande. Se 2020 ensinou algo, foi que o imponderável às vezes acontece. E se algo ocorrer em 2022? Alguma mudança drástica no preço do barril? Mudanças na política de preços da OPEP? Teremos o preço de um ICMS considerando um período temporal completamente diferente”, explica.

“Se tudo der certo, talvez o PL sirva a um propósito. O problema é que são muitos cenários e fatores possíveis, e isso é perigoso”, afirma.

Além disso, ela critica a complexidade da proposta. “Deveríamos estar comprometidos pela simplicidade, mas estamos encaminhando uma saída complexa, algo que não deveria caber mais no direito tributário moderno”, critica.

Aumento de subsídios. E como fica o ESG?
Em um mundo onde se fala cada vez mais em ESG, sigla em inglês em que o E se refere à Governança Ambiental, com companhias buscando maior avaliação de impacto em relação à pegadas de carbono e fatores ambientais, a proposta de aumentar o subsídio a um combustível fóssil gera controvérsia.

“Gera um contrassenso. A ideia é ter um imposto Pigouviano que desincentive o uso de combustíveis fósseis. Então, não faz sentido subsidiar”, afirma Cristiano Oliveira. Ele se refere a uma tributação com modalidade extrafiscal, que busca, além do viés arrecadatório, desincentivar o consumo de determinado bem que gera efeitos colaterais adversos para a sociedade (no caso, a emissão de poluentes).

Gabriel Brasil concorda. “O tema dos subsídios para combustíveis fósseis é um dos grandes desafios para países emergentes no contexto de agendas ESG para os próximos anos. Por um lado, continua sendo atraente para governos com popularidade em queda a promoção de incentivos — tanto na produção como no consumo — como forma de controlar a inflação e de amenizar o descontentamento da classe média com a volatilidade dos preços internacionais. Pelo outro, trata-se de um setor cuja natureza é substancialmente danosa às pretensões globais de redução de emissões de CO2”, pontua o analista político.

Para ele, no país há boa disposição por parte dos partidos políticos em alienar sua retórica de sustentabilidade para acomodar o que caracterizam como um apoio direto à população. Algo presente tanto à esquerda quanto à direita.

“A incoerência é clara e significativa, e representará um desafio grandioso para o debate político-econômico brasileiro nos próximos anos. Vale notar que trata-se de um problema complexo, cujas soluções demandarão níveis de coordenação grandiosos e que favoreçam uma transição que não sobrecarregue setores mais frágeis da sociedade — inclusive os próprios caminhoneiros”, explica.

“No médio e longo-prazo, a melhoria das nossas perspectivas dependerá de como a sociedade civil e o establishment político (liderado pelo governo federal) vão encarar a priorização da agenda de sustentabilidade”, afirma Gabriel Brasil.

Ele analisa que o país está atrás das nações desenvolvidas e de outros emergentes. “Há uma noção falaciosa de que há uma contradição entre sustentabilidade e crescimento econômico. Os países desenvolvidos — sobretudo a Europa, mas também a Ásia e os Estados Unidos — já mostraram que esse trade-off não se sustenta”, conclui o analista da Control Risks.

Fundo de estabilização de preços
O governo estuda também a criação de um fundo para estabilizar preços dos combustíveis, mas a proposta também é alvo de críticas.

Entre eles, Marcos Mendes. “Os incentivos políticos atuam de forma distinta nos períodos de alta e de baixa dos preços. Na alta, há clamor público para que o governo tome uma providência. Na baixa, é politicamente antipático manter o preço alto. A consequência é que o fundo estará sempre sem fundos”, o que demandaria recursos públicos para manter o subsídio.

Mendes também critica a regressividade tributária da proposta. “Isso financiaria tanto o gás de cozinha da família pobre quanto a gasolina do carrão do rico. Consumiria recursos públicos que poderiam ser direcionados a outras políticas públicas de maior retorno social e econômico. Estimularia o consumo de poluentes, distorceria os sinais de preços de mercado, estimulando o consumo de um bem escasso. Não há política de subsídio a combustíveis com final feliz”, afirma.

“É muito complicado… iriam reclamar quando o preço internacional começasse a cair e o diesel não. Sempre vão reclamar”, resume Oliveira.

Tabelamento do frete
Como resposta à revolta dos caminhoneiros em 2018, o governo Temer atendeu uma demanda da categoria para criação de um tabelamento de frete, elevando os preços praticados na média do mercado.

Contudo, estudo conduzido por Cristiano Oliveira com o também economista Rafael Pereira concluiu que houve prejuízo aos rendimentos de motoristas de caminhões autônomos.

“Enquanto os proprietários de transportadoras foram beneficiados, os motoristas autônomos de caminhões foram prejudicados com as medidas. A renda dos primeiros aumentou em até 28%, tendo sido estimado que a renda dos caminhoneiros autônomos, em contrapartida, caiu cerca de 20%”, aponta o levantamento.

Isso porque, com o aumento dos custos, houve redução de demanda, além de os caminhoneiros autônomos nem sempre terem poder de barganha que permita o cumprimento do tabelamento. Esta é uma das principais insatisfações da categoria.

A constitucionalidade do tabelamento do frete tramita no STF, e eventual decisão desfavorável ao instrumento é analisada como possível gatilho para uma escalada da situação, como explica Gabriel Brasil. “Há uma narrativa predominante entre os caminhoneiros autônomos de que a corte é a principal responsável por alguns dos problemas que atualmente enfrenta o país. Por outro lado, temos visto membros do STF trabalharem em conjunto com o Congresso e até o governo para desenhar soluções menos drásticas para temas judicializados, como estamos vendo na questão dos precatórios. Isso deve mitigar um pouco esse risco”, analisa.

Perspectivas
O analista da Control Risks Gabriel Brasil não vê saída política fácil para a questão.

“É provável que, pressionado como está e com a baixa capacidade de coordenação e articulação que sempre teve, o governo de Jair Bolsonaro acabe mantendo ou até ampliando a postura de endosso às demandas dos caminhoneiros que adotou nos últimos três anos. Isso deve implicar, inclusive, a concessão de subsídios diretos”, diz.

Para ele, não há soluções estruturalmente eficazes para o problema nos próximos meses, e é possível que a questão acabe prejudicando o compromisso fiscal do governo.


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