Privilégios
Embora as más línguas critique nossos programas de redistribuição de renda, somos os melhores em tirar do pobre para dar ao rico.

Por
Madeleine Lacsko – Gazeta do Povo

Estátua A Justiça, de Alfredo Ceschiatti, praça dos três poderes, Fachada do Supremo Tribunal Federal (STF)

| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Muita gente reclama que o Brasil não consegue resolver a questão crônica da pobreza e redistribuição de renda. Programas como o Bolsa Família, por exemplo, têm resultados positivos mas recebem menos dinheiro do que o Bolsa Empresário Amigo de Governo, algo criado conjuntamente. No entanto, considero injusto dizer que não temos um programa de redistribuição de renda que funcione. Temos sim.

Talvez por falta de patriotismo você não saiba, mas o Brasil tem o mais eficiente programa de redistribuição de renda da galáxia. Redistribui do pobre para o rico e o rico ainda ganha o direito de chorar miséria e se dizer injustiçado. Chama-se Carreiras Jurídicas no Judiciário, MP e Defensoria. Nem deputado ganhou tanto benefício a mais na pandemia quanto estes bravos guerreiros.

Outro dia li a notícia de que os nobres desembargadores do Judiciário do meu estado querem aumento salarial porque estão trabalhando demais. Vocês sabem que eu já trabalhei no STF, assessorei associações de juízes e de promotores. Salvo raras e honrosas exceções, anônimas e lotadas no interior em sua maioria, difícil alguém que realmente pegue no pesado.

Fico pensando se resolvessem descontar das horas trabalhadas aquelas gastas em congressos nas cidades praianas ou dando entrevistas. Tem gente que, no final, iria ter trabalhado de verdade umas 4 horas por mês. O pessoal reclama da agenda do presidento, que tem menos compromisso do que minhas tias dondocas. Ficam xingando deputado que trabalha só de terça a quinta. Todo mundo aí tá trabalhando mais do que nossos bravos guerreiros da Justiça brasileira.

Obviamente é um privilégio para a casta da casta. Quem é trouxa dedicado acaba trabalhando em cidade pequena cheia de pobre e com ausência de outros órgãos do Estado. Daí, seja juiz ou promotor, vira uma espécie de faz-tudo. Aliás, nesses casos nem ter a formação em Direito basta, o sujeito tem de ter CRM, CRO, CREA e, principalmente, CRP. Vai resolver problema de todo mundo o tempo todo e ficar só com o salário mesmo, nada de penduricalhos mil nem folgas.

Anos atrás, o então presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo defendeu de forma enérgica a necessidade de aumento de salários. Os juízes estariam até mesmo sem dinheiro para ir comprar terno em Miami. Absurdo! Um amigo que pegou uma comarca trabalhista tumultuadíssima no ABC me disse, talvez com inveja: “veja que esse deveria ser meu tipo de problema e eu pego só enrosco”. Adivinha quem está pedindo aumento? O pessoal do terno em Miami, claro.

O amigo do ABC vive muito bem e vive agradecendo a Deus ter passado no concurso. Mas não chegou ao nível espiritual do terno em Miami nem de poder se ausentar do trabalho em função de dar entrevistas ou participar de convescotes. Durante a pandemia, o que ele ganhou foi processo disciplinar no CNJ. Saiu do sério numa audiência ao perceber que o empregado e o preposto da empresa estavam na mesma sala, escondendo do Judiciário que haviam feito acordo.

A renda do brasileiro caiu em torno de 10% durante a pandemia. Isso não quer dizer que cada um ganha 10% a menos, significa que tem gente absolutamente quebrada a ponto de gerar esse impacto na massa total de trabalhadores. Enquanto isso, viralizaram durante toda a pandemia as listas de quem recebeu salários de mais de R$ 100 mil na casta do Judiciário. Mas eles estão trabalhando demais e precisam de aumento. Será pago obviamente pelo pessoal que ficou mais pobre. Redistribuição de renda.

Esse gráfico é do Boletim Desigualdade das Metrópoles, da PUC/RS e mostra a variação da renda dos trabalhadores. Nada animador. Mas o dado mais interessante talvez seja o quanto é essa renda. Eu li em vários lugares que o baque econômico atingiu primeiro os pobres mas chegou já na classe média alta. Isso significa que a família ganha mais de R$ 3.100,00 per capita e está nos 10% mais ricos da população. Talvez você já esteja no clube dos bilionários sem saber.

Aqui está a prova cabal de que realmente temos, com as Carreiras Jurídicas do Judiciário e MP, o melhor programa de redistribuição de renda da Via Láctea. O vale-refeição dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Amapá é de R$ 3.500,00. Só isso já é R$ 400,00 a mais que a renda necessária para integrar a classe-média-alta brasileira, os 10% mais ricos. Leia essa coluna do Lucio Vaz e entenda por que eu luto tanto por uma nomeação no Judiciário brasileiro.

Obviamente não é em todos os tribunais que se tem tanto sucesso na redistribuição de renda. Os juízes do Tribunal de Justiça de Pernambuco recebem apenas R$ 1.561,80 de vale-refeição, o que deixa as refeições deles distantes da classe média alta. E veja a injustiça: só chegou nesse valor porque eles conseguiram um aumento de 46% no último mês de junho, em plena pandemia.

A coluna do Lucio Vaz traz os casos em que você é bem mais generoso com nossos bravos guerreiros da Justiça. Tem uma juíza que foi removida de um estado a outro e ganhou R$ 100 mil de auxílio-mudança. Eu achei que tinham aberto uma comarca na Lua quando vi o valor. De repente abriram mesmo, mas quem está lá é o desembargador do Rio de Janeiro que recebeu R$ 72.400,00 de indenização de transporte. Por isso você teve de pagar a conta de celular de R$ 17.300,00 de um desembargador de Goiás, ligou para a nova comarca na Lua.

Mas eu estou preocupada mesmo é com a saúde de diversos desembargadores pelo Brasil. No Amapá, um deles recebeu R$ 163.000,00 de auxílio-refeição. Avalie o quando a Excelência precisou comer para chegar nesse valor, um perigo para a saúde. É por essas e outras que, no Maranhão, nós precisamos pagar R$ 334.000,00 de auxílio saúde para uma desembargadora. Ambiente insalubre o deles.

Em dezembro, 20 dos 26 desembargadores do Tribunal de Justiça do Amazonas receberam salários de mais de R$ 100.000,00. O que recebeu mais teve rendimentos de R$ 237.067,45. Mas não é tudo salário. São R$ 35.462,22 de salário, R$ 9.960,26 de indenizações, R$ 4.964,71 de direitos pessoais e R$ 186.680,26 de direitos eventuais. Eu não sei o que são direitos eventuais mas, se quiserem me pagar, também aceito.

Você pode achar os salários nababescos. Mas são cargos importantíssimos e que exigem muito preparo e estudo. Na verdade, o que o pessoal do Amazonas ganha não é suficiente para muitas coisas. Por mim, eles adotariam o auxílio-livro, à semelhança do Tribunal de Justiça do Mato Grosso. São dois salários extras por ano, cerca de R$ 70.000,00. Como não têm a verba, os desembargadores do Amazonas passam perrengues como o da queda da estante de livros falsa na audiência virtual.

Tomara que o desembargador não ouça a jornalista porque é bem capaz de querer processar o vendedor do cenário por danos morais de verdade. As juízas que foram para o aeroporto errado e perderam o voo por isso processaram a companhia aérea e ganharam uma bolada, por que não? Quem vive nesse mundo é que julga os eventuais conflitos e disputa do país em que rico ganha menos que vale-refeição de juiz. É um sistema que definitivamente não tem como dar certo.


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