1. Internacional 

A História julgará com severidade o presidente russo, que lançou um ataque contra país vizinho

The Economist, O Estado de S.Paulo

Ao momento em que começou, no início de uma lúgubre manhã cinzenta, ontem, o ataque contra a Ucrânia ordenado pelo presidente russo, Vladimir Putin, havia adquirido uma repugnante inevitabilidade. Ainda que nada sobre essa guerra fosse inevitável. Trata-se de um conflito completamente fabricado por ele. Nos combates e no sofrimento que estão por vir, muito sangue ucraniano e russo será derramado. Cada gota sujará as mãos de Putin.

Por meses, enquanto o presidente russo permanecia recluso, reunindo aproximadamente 190 mil soldados russos nas fronteiras da Ucrânia, uma dúvida pairou: o que este homem quer? Agora que está claro que ele almeja a guerra, a dúvida é: onde ele vai parar?

Putin
Ao agir, o presidente russo Vladimir Putin descartou o cálculo cotidiano de riscos e benefícios políticos, avalia The Economist. Foto: Sputnik/Alexei Nikolskyi/Kremlin via REUTERS

A julgar pelas palavras de Putin na véspera do ataque, sua intenção é que o mundo acredite que nada o impedirá. Em seu discurso de guerra, gravado no dia 21 e transmitido enquanto ele lançava as primeiras saraivadas de mísseis de cruzeiro contra seus companheiros eslavos, o presidente russo vociferou contra “o império de mentiras” que é o Ocidente. Gabando-se de seu arsenal nuclear, ele ameaçou diretamente “esmagar” qualquer país que tentar impedi-lo.

Relatos iniciais, alguns não confirmados, apenas sublinharam a escala de sua ambição. Especulou-se que o presidente russo poderia se satisfazer com o controle sobre Donetsk e Luhansk, regiões do leste da Ucrânia que contêm pequenos enclaves apoiados pela Rússia e foram objeto de diplomacia de último minuto. Mas tudo isso desmoronou em face ao vasto ataque.https://arte.estadao.com.br/uva/?id=z7R5n2

Os relatos deram conta de que forças russas atravessaram as fronteiras da Ucrânia pelo leste, na direção de Carcóvia, a segunda maior cidade ucraniana; pelo sul, a partir da Crimeia, na direção de Kherson; e pelo norte, a partir de Belarus, a caminho de Kiev, a capital. Não ficou claro a que ritmo as forças russas estão se movendo. Mas Putin aparentemente cobiça toda a Ucrânia, conforme afirmam desde o início dados de inteligência dos americanos e dos britânicos. Ao agir, o presidente russo descartou o cálculo cotidiano de riscos e benefícios políticos. Em vez disso, está motivado pela perigosa e alucinada ideia de que tem um encontro marcado com a História.

É por este motivo que, se Putin conquistar uma grande fatia da Ucrânia, o ceifador de territórios, não parará em suas fronteiras para fazer paz. Ele poderá não invadir países da Otan que integraram o império soviético, pelo menos não num primeiro momento. Mas, insuflado pela vitória, ele os sujeitará a ciberataques e guerra de informação que beiram o limite do conflito.

Inimigo

Putin ameaçará a Otan dessa maneira porque veio a acreditar que a aliança ameaça a Rússia e seu povo. Discursando esta semana, ele se enfureceu com a expansão da Otan ao leste. Posteriormente, denunciou um “genocídio” fictício na Ucrânia, segundo ele financiado pelo Ocidente. Putin não pode dizer aos russos que seu Exército está lutando contra irmãos e irmãs ucranianos que conquistaram liberdade. Então, ele lhes diz que a Rússia está em guerra contra os Estados Unidos, a Otan e seus aliados.

A abominável verdade é que Putin lançou, sem provocação, um ataque contra um país vizinho soberano. Ele está obcecado com a aliança defensiva a oeste. E está atropelando os princípios que fundamentam a paz no século 21. É por isso que o mundo deve infligir um custo pesado sobre sua agressão. PARA ENTENDEREntenda a crise entre Rússia e Otan na UcrâniaO que começou como uma troca de acusações, em novembro do ano passado, evoluiu para uma crise internacional com mobilização de tropas e de esforços diplomáticos

Isso começa com amplas sanções punitivas contra o sistema financeiro da Rússia, suas indústrias de alta tecnologia e sua elite endinheirada. Pouco antes da invasão, quando a Rússia reconheceu as duas repúblicas, o Ocidente impôs apenas sanções modestas. Agora, não deve hesitar. Mesmo que a Rússia tenha estabelecido uma economia fortificada, ainda é conectada ao mundo e, conforme demonstra a queda inicial, de 45%, no mercado de ações russo, o país sofrerá.

É verdade que as sanções também prejudicarão o Ocidente. Os preços do petróleo ultrapassaram US$ 100 o barril com a invasão. A Rússia é o maior fornecedor de gás à Europa. Exporta minérios como níquel e paládio e, assim como a Ucrânia, exporta trigo. Tudo isso ocasionará problemas num momento em que a economia mundial luta contra inflação e perturbações em cadeias de fornecimento. E ainda assim, na mesma medida, o fato de os países ocidentais estarem preparados para sofrer com sanções manda a Putin a mensagem de que o Ocidente se preocupa com suas transgressões.

Otan

Uma segunda tarefa é reforçar o flanco oriental da Otan. Até agora, a aliança buscou agir dentro dos parâmetros do pacto que assinou com a Rússia em 1997, que limita operações da Otan no antigo bloco soviético. A Otan deve rasgá-lo e valer-se da liberdade que isso engendra para guarnecer o leste com tropas. Isso levará tempo. Enquanto isso, a Otan deve comprovar sua união e seu intento, enviando imediatamente sua força de reação rápida, de 40 mil soldados, para os países na linha de frente. Essas tropas adicionarão credibilidade à sua doutrina de que um ataque contra um membro é um ataque contra todos. E também sinalizarão para Putin que, quanto mais ele se aprofundar na Ucrânia, mais provável será que ele acabe fortalecendo a presença da Otan em suas fronteiras – exatamente o oposto do que ele pretende.

E o mundo deveria ajudar a Ucrânia a defender-se e ao seu povo, que arcará com o ônus do sofrimento. Poucas horas após o início da guerra vieram os primeiros relatos de mortes de militares e civis. Volodmir Zelenski, o presidente, conclamou seus compatriotas a resistir. Eles devem escolher como e onde repelir Putin, seu Exército e seus apoiadores caso o russo instaure um governo fantoche em Kiev. A Otan não está acionando tropas para a Ucrânia imediatamente – o que é correto, pelo temor de um confronto entre potências nucleares. Mas seus membros devem dar assistência à Ucrânia provendo armas, dinheiro, abrigo a refugiados e, caso necessário, um governo no exílio.

Riscos

Alguns dirão que é arriscado demais desafiar Putin nesses termos – porque ele perdeu contato com a realidade; ou porque ele escalará o conflito, errará cálculos ou abraçará a China. Isso, em si, seria um erro de cálculo. Depois de 22 anos no topo, até mesmo um ditador com um senso exagerado a respeito do próprio destino tem faro para sobreviver e lidar com as idas e vindas do poder. Muitos russos, confusos com a crise que apareceu do nada, podem não estar entusiasmados a respeito de travar uma guerra mortífera contra seus irmãos e irmãs na Ucrânia. Esse é um elemento que o Ocidente pode explorar.

Conciliar-se com Putin na esperança de que ele passará a se comportar gentilmente seria ainda mais perigoso. Até mesmo a China deveria perceber que um homem que avança violentamente através de fronteiras é uma ameaça à estabilidade que Pequim busca. Quanto mais livre Putin estiver para agir hoje, mais determinado estará para impor sua visão amanhã. E mais sangue será derramado para finalmente fazê-lo parar./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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By valeon