1. Internacional 

O presidente russo acusou falsamente o governo eleito democraticamente da Ucrânia de ‘genocídio’

Eugene Robinson, O Estado de S.Paulo

O brutal e trágico ataque de Vladimir Putin contra a Ucrânia expressa mais que suas ilusões de grandeza. É também uma lição para o povo russo a respeito do que acontece com aqueles que insistem em buscar a democracia em estilo ocidental.

Putin realmente pareceu um doido esta semana, passando sermão em seu time de segurança nacional como um capitão Queeg em busca de seus morangos e dirigindo-se ao mundo num digressivo solilóquio de uma hora repleto de invenções históricas e autocomiseração paranóica. Ele acusou falsamente e absurdamente o governo eleito democraticamente da Ucrânia de “genocídio”, usando essa falácia como justificativa para o maior ataque militar na Europa desde a Segunda Guerra.

Da perspectiva distorcida de Putin, o ataque não ocorreu sem provocação. Duas vezes desde a virada deste século, o povo ucraniano teve a ousadia de se levantar contra e depor lideranças que desejaram a Ucrânia pós-soviética como vassala permanente da Rússia de Putin. A última coisa que Putin quer é que os russos percebam que tal heresia — que poderia ameaçar seu próprio poder — possa passar impune.

Rússia - Vladimir Putin
Presidente Vladimir Putin concede entrevista coletiva no Kremlin, em 22 de fevereiro  Foto: Mikhail Klimentyev, Sputnik, Kremlin Pool Photo via AP

Então, Putin tem motivos tanto racionais quanto irracionais para o abominável crime que está cometendo. No curto prazo, é quase certo que ele “vença” sua guerra. No longo prazo, porém, sua aventura na Ucrânia poderá se provar nem “inteligente” nem “astuta”, apesar do que possa pensar o ex-presidente Donald Trump.

Acredito que Putin quer que as futuras gerações o vejam como uma das grandes figuras da história russa, juntamente com Ivan, o Terrível; Pedro, o Grande; Catarina, a Grande; Lênin; e Stálin. Até 2005, ele afirmava que “o fim da União Soviética foi a maior catástrofe    geopolítica do século”. Ele descreveu como tragédia o fato de “dezenas de milhões de nossos cidadãos e compatriotas terem se visto excluídos além dos limites do território russo”.

Segundo tudo indica, o líder russo quer ser lembrado como Putin, o Grande, o que reverteu a “catástrofe” e restaurou o Império Russo — primeiramente czarista, depois soviético e depois desmembrado — à glória que lhe é de direito. E na visão de Putin, a joia mais preciosa, arrancada injustamente da coroa imperial, é a Ucrânia.

Sanções econômicas, como as que estão sendo aplicadas pelos Estados Unidos e nossos aliados, são eficazes para fazer líderes recalcularem custos e benefícios de suas ações. Mas podem surtir pouco ou nenhum efeito sobre fantasias messiânicas ou cruzadas megalomaníacas.

O fato de haver método na loucura de Putin pode tornar as sanções ainda menos capazes de mudar seu comportamento, especialmente porque ele buscou fortalecer a economia russa contra tais punições. Uma ameaça à posição do líder russo em relação à história é uma coisa; uma ameaça à sua contínua permanência no poder é coisa bem diferente.

Em 2004, milhões de ucranianos tomaram as russas no levante que ficou conhecido como Revolução Laranja e evitaram a presidência de Viktor Yanukovich, o candidato apoiado pela Rússia eleito numa votação repleta de fraudes. Yanukovich tornou-se presidente posteriormente em 2010, mas acabou deposto do cargo por protestos massivos, em 2014, em razão de sua recusa em assinar um acordo que forjava laços políticos e econômicos mais próximos com a União Europeia.

Essas demonstrações do poder popular impressionaram Putin — e não de maneira positiva. Ele assumiu a posição de que a Revolução da Dignidade em 2014 na Ucrânia não passou de um golpe ilegal. Como sinal concreto de seu descontentamento, ele tomou a Crimeia à força e ajudou separatistas russófonos a estabelecer dois enclaves —  Donetsk e Luhansk — no leste da Ucrânia, que na segunda-feira ele reconheceu como repúblicas independentes.

A bizarra e falsa alegação de Putin de que o governo do presidente ucraniano, Volodymyr Zelenski, está repleto de “nazistas” parece uma justificativa inventada para enviar tropas a Kiev, onde ele sem dúvida tenciona dissolver o governo eleito democraticamente e instaurar autoridades leais à Mãe Rússia. Imagens transmitidas pela CNN na manhã da quinta-feira mostraram um aeroporto militar a 32 quilômetros de Kiev já tomado pelos russos.

Mas meios de comunicação internacionais também transmitiram imagens de manifestantes em Moscou e outras cidades russas sendo presos e repelidos. Ver soldados russos travando guerra contra ucranianos, com quem os russos possuem laços históricos e com frequência familiares, é um tipo de choque que tende a levantar dúvidas entre os russos a respeito do juízo de Putin. E, talvez, sobre seu futuro.

Em vez de confundir e enfraquecer a Otan, Putin parece ter unido seus membros. Em vez de apagar a noção do estatuto nacional da Ucrânia independente, ele parece tê-lo reforçado.

E ainda que cerca de 200 mil soldados equipados com armamentos modernos possam ser suficientes para derrotar o Exército ucraniano, não são suficientes para conquistar permanentemente um país com mais de 43 milhões de pessoas que não querem ser objeto de uma ocupação. Putin não fez uma jogada corajosa de xadrez, ele virou o tabuleiro. E não pode estar certo de onde as peças irão cair. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

*Eugene Robinson escreve uma coluna bissemanal sobre política e cultura e participa de um chat semanal com leitores. Em três décadas de carreira no Washington Post, Robinson cobriu o governo municipal como repórter, foi editor de cidades, correspondente estrangeiro em Buenos Aires e Londres, editor de internacional e secretário-assistente de redação encarregado da seção Style do jornal.

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