“Mãe Pátria”: como o colapso da Venezuela destruiu uma família

Por
Maria Clara Vieira


Livro de jornalista venezuelana relata como um Estado tirânico corrompe até as relações familiares| Foto: EFE

A “Arábia Saudita” da Venezuela. Assim era conhecida a cidade de Maracaibo, o segundo maior município do país, a cerca de 700 quilômetros de Caracas, na longínqua década de 1970, quando um dos maiores booms do petróleo transformou a pequena nação da América do Sul na nova promessa continental. Foi nesta cidade que a família da jornalista Paula Ramón construiu suas bases, nos tempos em que o pujante Estado venezuelano, impulsionado pela criação da PDVSA, se tornou o grande financiador do desenvolvimento do país.

Filha de uma mãe natural de um pequeno município nos Andes e de um pai espanhol deportado durante o regime franquista e feito prisioneiro nos campos de concentração alemães durante a Segunda Guerra, Paula, que vive no Brasil como repórter correspondente da AFP, é a caçula dos três filhos do casal, um dos centenas de milhares a surfar a onda de benesses concedidas pelo governo nos tempos de bonança – para, em poucos anos, experimentar a derrocada.

A trágica história da Venezuela, bem como seus desdobramentos contemporâneos, são bastante familiares aos leitores da Gazeta do Povo: trata-se de um caso ilustrativo do que o cientista político americano Michael L. Ross apelidou de “maldição do petróleo”, cujos grandes protagonistas são Hugo Chávez e seu sucessor não menos despótico, Nicolás Maduro. Amparado por uma narrativa íntima e detalhada, o livro “Mãe Pátria” (Ed. Companhia das Letras), de autoria da jornalista, vai além dos golpes e crises que marcaram as últimas décadas na Venezuela: trata-se de um testemunho pessoal do fracasso de uma família em paralelo com o de uma nação inteira.

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Em 1947, o país que atraiu Jesús Ramón, pai de Paula, à América Latina, era próspero e promissor, o que possibilitou que o imigrante e a esposa, Paulina, nas décadas seguintes, construíssem uma vida estável com casa própria, um quarto para cada filho e até um Atari. Em 1974, os recursos oriundos do petróleo começariam a jorrar sob o governo de Carlos Andréz Pérez, que acelerou o longo processo de inchaço do aparelho estatal. Até então, tudo o que o “ouro negro” tocava, virava lucro.

“Os venezuelanos tinham poder de compra, o desemprego era inferior a 5%, a educação e a saúde eram públicas, viagens ao exterior para fazer compras ou adquirir caixas de uísque escocês eram coisas cotidianas para muita gente na Venezuela de então. Caracas, efervescente e cosmopolita, era chamada de ‘sucursal do céu'”, descreve Paula.

Quando a jornalista nasceu, em 1981, o fim do boom petroleiro começou a dar pistas de que o desenvolvimento venezuelano não era sustentável – bem como as condições experimentadas pelas famílias: “No começo da década, meu pai, assim como o Estado, havia torrado tudo”, conta. Ainda assim, permaneciam a casa e os serviços básicos de qualidade. Enquanto os dois irmãos mais velhos foram para escolas públicas, Paula foi enviada a um colégio particular, pago através de subsídios.

O encantamento com Chávez

Como resultado da desaceleração da economia, o início dos anos 1990 traria uma onda de revoltas no país. A jornalista se recorda de que, na manhã de 4 de fevereiro de 1992, seus pais – ele, simpatizante da social-democracia e, ela, descrente da política – “pareciam seduzidos pela desenvoltura daquele Chávez”, um jovem comandante que dizia querer “encaminhar o país para um destino melhor”.

Vítima de um infarto em 1993, Jesús Ramón não viveria para ver “o Comandante” chegar ao poder. Severamente reduzidos pela morte do patriarca, os rendimentos da família voltariam a crescer com os novos programas sociais: havia dinheiro para sobremesas e festas aos finais de semana.

Em 2002, com o apoio maciço da população, Hugo Chávez se tornava “o dono do Estado e do país”. Sete anos depois, começaram os intermináveis anos de escassez – e as sucessivas reformas na casa da família para conter a violência galopante. A cada ano, os parcos recursos da família eram convertidos em novos muros e grades, enquanto nem as caixas d’água escapavam da mira dos assaltantes.

Na mesma época, o governo daria início a uma completa reformulação na área da saúde, outra promessa associada aos excedentes do petróleo que nunca vieram. E Paulina, a mãe, portadora de uma doença autoimune e de um quadro de artrite, precisou de um seguro-saúde e passou a demandar mais atenção dos filhos – sobretudo, da filha caçula.

“O cobertor de minha mãe se encurtava como nunca, e meu trabalho era coser remendos. Foi a partir daí que o lado emocional se misturou com o econômico, criando um redemoinho que se intensificou com o passar dos anos. (…) Aos poucos, ficou claro para mim que nem sempre eu teria uma solução para lutar com os constantes desafios da vida na Venezuela, cuja realidade desumana e distorcida se tornara o novo normal”, relata a autora.

Família destruída
É neste ponto que a autora começa a destrinchar um aspecto pouco explorado quando se trata da história política e econômica de um país: centrada principalmente em sua relação com a mãe e com os irmãos, Paula narra como decisões tomadas por líderes que se creem (e se projetam como) deuses, podem ser um poderoso catalisador da destruição de relações sociais e, sobretudo, de laços familiares.

“O tempo todo acontecia alguma coisa nova na Venezuela, ou então entre minha mãe e meus irmãos, ou entre minha mãe e mim, ou simplesmente com a minha mãe. Num dia ela estava reclamando que eu não a havia tratado bem, para logo em seguida me pedir que lhe fizesse uma transferência on-line. No meio disso tudo, me contava como estava decepcionada com algum dos meus irmãos, ou com os dois ao mesmo tempo, para poucas horas depois me recriminar por ignorar como sua saúde estava precária. É difícil saber o quanto do nosso drama era fruto apenas das nossas brigas familiares e o quanto era consequência do agravamento das coisas na Venezuela”.

Formada em uma universidade pública, a autora morou na China, nos Estados Unidos e no Brasil – decisão que suscitou uma avalanche de ressentimentos. De um lado, há a mãe, que ora parece ter orgulho da filha, ora se ressente de sua mudança. Do outro, os irmãos, um de caráter hermético e prático, que imigrou ilegalmente para o Panamá em 2015 e manteve algum relacionamento com as mulheres da família até o falecimento de Paulina; o outro, um policial devotado ao chavismo.

“Chávez se enraizou de tal forma na nossa vida que adquiriu a força de um mito. Tornou-se um divisor de águas em nossa história. Não apenas marcou um antes e um depois, mas transformou as nossas fissuras numa separação cuja solução às vezes parece um desafio maior que a própria crise econômica”, narra Paula. “Eu era uma privilegiada por não morar na Venezuela, por ter comida, por não ouvir passos no telhado e por ter direito de me preocupar com problemas pessoais, como o fim do meu casamento ou minha insatisfação profissional, mas às vezes sentia que minha família queria me castigar por isso”.

Segue-se uma sucessão de tragédias nacionais e familiares. Em suas viagens à terra natal, já entre 2015 e 2016, a jornalista registra a emergência do mercado paralelo do dólar e as madrugadas na fila do supermercado por itens básicos de higiene e alimentação, além das viagens com malas abarrotadas de mantimentos para a mãe – contando com o péssimo estado dos aparelhos de raio-X nos aeroportos.

Recusando-se a deixar a casa de Maracaibo, símbolo de uma era de estabilidade, Paulina, com a saúde severamente agravada, passa a depender de uma empregada contratada pela filha, gerando uma nova avalanche de discussões. “Eu confiava em Luz, mas minha mãe desconfiava até de Andrés, seu próprio filho, que, como soube mais tarde, não só estava levando as coisas da casa como colocava na cabeça da minha mãe as suspeitas contra Luz”.

Derrota dos povos livres
Ao final da vida, tendo se mudado para a cidade de San Cristóval por insistência da filha, Paulina acabou passando fome nas mãos da própria irmã, que aceitou recebê-la apenas para se aproveitar das remessas de comida e mantimentos enviados pela jornalista. É difícil não se comover com o relato da autora que, descobrindo o caso após a morte da mãe, chega a se culpar pela mudança. “Mãe, eu não sabia mais o que fazer, pensei”.

Como um retrato da brutalização das relações humanas em meio à guerra pela sobrevivência, “Mãe Pátria” é mais do que um poderoso alerta do que um Estado tirânico é capaz de sufocar. Trata-se, também, de uma ilustração fidedigna do ensaio “Maldanado propõe um brinde”, incluso nas “Cartas de um diabo a seu aprendiz”, de C. S. Lewis, no qual o autor descreve o ponto de vista de um demônio a orientar seu pupilo:

“A derrota de povos livres e a multiplicação de estados escravos são para nós um meio, mas o fim real é a destruição de indivíduos, pois somente os indivíduos podem ser salvos ou condenados, tornar-se filhos do Inimigo ou nosso alimento. O valor supremo, para nós, de qualquer revolução, guerra ou fome está na angústia individual, na traição, no ódio, na raiva e no desespero que elas são capazes de produzir”.


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