Após derrota

JOANA CUNHA – Folha de S. Paulo

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Nos últimos meses que restam para concluir o mandato, o presidente Jair Bolsonaro (PL) prepara um pacote de medidas na Economia.

Nos próximos dias, duas dessas propostas devem ser assinadas pelo mandatário, que perdeu a eleição para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) neste domingo (30).

Uma delas é a criação do Fundo Garantidor por medida provisória destinado a financiamentos habitacionais para baixa renda ou trabalhadores informais.

A ideia do fundo, segundo assessores do Planalto que participaram das discussões com o Ministério da Economia, é permitir que trabalhadores com ganhos mensais de até R$ 2.400 possam contratar recursos do fundo para completar o valor das parcelas do crédito habitacional, pagando uma taxa pequena pela utilização desse mecanismo embutida na mensalidade do financiamento.

Técnicos da Economia afirmam que, com esse veículo financeiro, o tomador informal poderia arcar com mensalidades maiores.

Hoje, eles só conseguem empenhar, em média, 17% de seus rendimentos mensais devido às dificuldades de comprovação de renda. Com o fundo, poderia chegar a 27%, tendo a chance de comprar imóveis de melhor qualidade com parcelas mais alinhadas com seus ganhos reais.

A medida também beneficia o setor de construção, que pleiteou a mudança junto ao ministro da Economia, Paulo Guedes.

Devido às restrições impostas pela legislação eleitoral, essa medida tinha sido adiada porque, na avaliação do governo, funcionaria como propaganda em favor do presidente.

Em outras frente, Bolsonaro deve assinar uma medida provisória criando o Programa Brasil de Semicondutores, plano para que grandes indústrias se instalem no país e passem a fabricar chips mediante incentivos fiscais, subsídios, e até dinheiro do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).

O plano é uma revisão das regras do Padis (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores), criado por Lula em 2007 e que condicionou isenções de tributos a investimentos em pesquisa e desenvolvimento. A novidade é a possibilidade de as empresas interessadas procurarem o BNDES para financiar sua operação no país.

Bolsonarismo não foi totalmente derrotado e vai avançar como força política, dizem analistas franceses

RFI 

Bolsonarismo não foi totalmente derrotado e vai avançar como força política, dizem analistas franceses© AP – Andre Penner

Passada à eleição de Luiz Inácio Lula da Silva e enquanto a sociedade brasileira ainda aguarda o posicionamento do presidente Jair Bolsonaro, que perdeu a reeleição, analistas políticos ouvidos pela RFI explicam os desafios do presidente eleito e tentam prever o futuro do “bolsonarismo” e sua atuação como força política em um terceiro mandato petista na presidência.

Isolamento e reconhecimento da derrota

A primeira preocupação é se há espaço para o atual presidente levantar suspeitas de fraude contra o processo eleitoral brasileiro, o que fica cada vez mais difícil, na medida em que outras lideranças, como os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, reconheceram a vitória de Lula. “Há vários discursos de lideranças dizendo que não houve fraude. Mesmo que o resultado tenha sido apertado, será difícil contestar. Mas fazer agitação para prejudicar o novo governo, isso pode acontecer”, acredita a historiadora Juliette Dumont, do Instituto de Altos Estudos sobre a América Latina (IHEAL) da Universidade Sorbonne Nouvelle. “Também devemos observar a posição dos militares, que não vão querer abrir mão do que receberam durante o governo Bolsonaro, pois há mais militares no governo hoje do que havia na ditadura”, destaca a especialista.

Para o cientista político Gaspard Estrada, diretor-executivo do Observatório Político da América Latina e Caribe (OPALC) da SciencePo, o silêncio de Jair Bolsonaro prova o seu isolacionismo. “Ele mostrou estar isolado, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco já reconheceram a vitória de Lula e o próprio juiz Sérgio Moro também. Então, se ele não reconhecer o resultado, pode haver protestos pontuais, como um bloqueio de caminhoneiros. Porém, o pior é que Bolsonaro vai perder a imunidade parlamentar e esses processos contra ele podem avançar”, diz. “Mas o bolsonarismo como força política vai continuar avançando. Ele vai se manter no jogo político porque, caso contrário, o futuro judicial dele pode ser pior”, acredita Estrada.

Juliette Dumont acha que a reconciliação do país vai ser difícil, ainda que necessária. “O bolsonarismo não foi totalmente derrotado, está muito presente, como o trumpismo continua a ser uma força presente e violenta nos Estados Unidos, como vimos no atentado contra o marido da democrata Nancy Pelosi”, cita. “O discurso de Lula foi para todos os brasileiros e isso é uma esperança. Vendo daqui da França, o que acontece no Brasil é um cansaço extremo das pessoas ao fim de uma campanha longa e violenta, com divisões nas famílias. Espero que este discurso de unidade possa ecoar na maioria dos lares brasileiros”, diz.

Desafios do governo Lula  

Unificar um país dividido será o maior desafio do novo governante, na opinião dos analistas ouvidos pela RFI.

Em seu primeiro discurso, Lula estendeu a mão para os eleitores que não votaram nele. Agora, ele tem de sinalizar como vai funcionar essa frente ampla, reunindo desde a esquerda radical até o centro-direita, explicar como isso vai se traduzir na composição do governo”, analisa Gaspard Estrada. “Um sucesso do governo Lula seria conseguir uma transição entre um Brasil distópico que volta à realidade”, completa.

O acadêmico da Sciences Po explica que Lula terá de compor com o novo Congresso Nacional para ter maioria política, o que não seria novidade para o petista. “Lula já governou com um Congresso conservador, pois esse tem sido o caso do Brasil. A diferença é que agora o número de partidos é menor. Mas o fato é que essa nova composição não é da mesma orientação política de Lula”, observa o cientista político, que diz não duvidar da capacidade do líder petista em articular parcerias. “Eu não duvido que deputados eleitos pelo PL possam apoiar o governo, mas até onde irão, não sei”.

Entretanto, o maior desafio do novo governo será econômico. “O Lula sabe que tem que entregar resultados rápidos na economia para que a pobreza e a fome diminuam no país e acho que ele vai focar muito em geração de empregos. Sem resultados, essa divisão da sociedade tende a aumentar”, diz.  

Democracia

Juliette Dumont destaca ainda “o enfraquecimento da democracia brasileira”, o que se justifica por “uma eleição sem debate político real, que se transformou mais em um combate, uma luta de duas visões distintas do mundo, muitos ataques, mentiras e pouco debate”, afirma.

Entretanto, como um sinal de resistência da democracia brasileira, “apesar da máquina de Estado bolsonarista, a máquina digital nas redes sociais e recursos do Estado, com os auxílios liberados pelo presidente nos últimos meses, Lula ganhou. Foi um voto pela democracia e que mostra que parte do povo brasileiro ainda aposta nela”, diz a historiadora.

Internacional

Quanto ao papel do Brasil no cenário internacional, Juliette Dumont acredita no retorno do país aos centros de debate. “O Brasil havia desaparecido do cenário internacional durante o mandato de Bolsonaro. Então, só pode ser algo novo. Desde o início do século XX, o Brasil sempre foi um ator importante do multilateralismo e esse eclipse, durante o mandato de Bolsonaro, era uma exceção na história diplomática brasileira”, destaca a historiadora. A acadêmica acredita na volta do Brasil em organizações como a ONU, a OMS, a OMC e na região latino-americana, impulsionando movimentos progressistas.

Para ela, “no contexto de crise por causa da guerra na Ucrânia, mas também crise econômica e climática, a volta do Brasil é uma boa notícia. Mas será preciso reconstruir o Itamaraty e a diplomacia brasileira, que tem muita tradição”, conclui.

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