Editorial
Por
Gazeta do Povo


Kevin McCarthy, atual líder da minoria republicana na Câmara de Representantes dos EUA, discursa em 9 de novembro, dia seguinte ao das eleições que devem dar aos republicanos a maioria na casa legislativa.| Foto: Will Oliver/EFE/EPA

Democratas (incluindo o presidente Joe Biden) e republicanos têm razões tanto para celebrar quanto para lamentar o resultado das eleições de meio de mandato (chamadas midterms) realizadas nesta terça-feira, em que os norte-americanos elegeram toda a Câmara de Representantes e pouco mais de um terço do Senado, além de governadores em 36 dos 50 estados. Como era esperado, o governo Biden deve perder a maioria que tinha na Câmara, mas conseguiu evitar uma vitória avassaladora dos republicanos; o “banho de sangue” – referência à cor vermelha que identifica o Partido Republicano – acabou não ocorrendo.

A oposição republicana de fato assumirá o controle da Câmara, mas sua maioria não terá a dimensão prevista. Os Estados Unidos adotam o sistema distrital puro, em que o país todo é dividido em distritos que elegem os deputados. Muitos deles são território praticamente dado como certo para um ou outro partido, devido à predominância de um determinado perfil étnico, socioeconômico ou cultural-ideológico dos eleitores – predominância às vezes obtida graças a redesenhos que criam distritos com formatos bastante bizarros, no que a cultura política americana chama de gerrymandering. Mas há cerca de uma centena de distritos onde o favoritismo de um partido é menor ou onde o resultado é imprevisível, em uma versão local dos swing states da eleição presidencial. Nesses distritos-chave, os republicanos conseguiram várias vitórias onde a situação já lhes era mais favorável, mas fracassaram na tentativa de reverter a preferência do eleitor em muitos distritos importantes que pendiam para o lado oposto. Com pouco menos de 30 dos 435 distritos ainda realizando a apuração na tarde de sexta-feira, a tendência é de que os republicanos elejam pouco mais de 220 deputados, o que lhes daria uma vantagem apertada de menos de dez cadeiras – para conseguir mais que isso, terão de contar com viradas em distritos onde candidatos democratas lideram a apuração.

Diante de uma economia com problemas, os democratas ofereceram ideologia woke como resposta e saíram derrotados. Mas o eleitor também não abraçou com entusiasmo o retorno puro e simples ao trumpismo que os republicanos ofereceram em muitos estados

No Senado, uma regra particular do estado da Geórgia pode salvar os republicanos, que falharam na missão de conquistar a maioria neste dia 8. Como eles provavelmente tirarão apenas uma cadeira dos democratas (em Nevada, que ainda não encerrou a apuração), mas também perderam para eles uma que estava em seu poder, devem manter os mesmos 50 senadores que detinham até agora, em um empate que beneficia os democratas, pois nesses casos o voto decisivo é da vice-presidente do país, Kamala Harris, que acumula o posto de presidente do Senado. Para sorte dos republicanos, o incumbente democrata Raphael Warnock venceu Herschel Walker na Geórgia, mas não atingiu os 50% de votos necessários para se sagrar vencedor nesta terça, forçando um segundo turno que ocorrerá em dezembro. Se Walker conseguir a virada, os republicanos enfim terão a maioria mínima, de 51 senadores.

O objetivo republicano de dificultar a vida de Biden ao tirar a “carta branca” que o governo tinha para implantar seu programa foi atingido, mas de forma muito mais modesta que o planejado. A nova maioria republicana na Câmara deve bastar para barrar muitos projetos, mas, caso Warnock vença o segundo turno na Geórgia e mantenha o controle democrata no Senado, a oposição precisará seguir contando com a sensatez do democrata Joe Manchin, senador que costuma se opor às pautas mais radicais de seu partido. Cabe ao Senado, por exemplo, analisar nomeações de juízes federais (não apenas os da Suprema Corte), e os republicanos precisarão de ajuda para impedir que Biden torne o Judiciário mais ideologizado.

A derrota democrata já era esperada; até por isso, são os republicanos que terão mais trabalho para entender por que não conseguiram a vitória elástica que se previa. A economia norte-americana passa por grandes dificuldades, com a maior inflação das últimas décadas e ameaças de recessão, graças às políticas expansionistas de Biden. Os democratas não tinham absolutamente nada a oferecer neste campo. A única estratégia de Biden foi tentar fazer das midterms um referendo não sobre seu governo, mas sobre o direito ao aborto, depois da decisão da Suprema Corte que derrubou Roe v. Wade, em junho, devolvendo aos estados o poder de legislar sobre o assunto como bem entenderem. Se é verdade que os temas morais importam bastante, como escrevemos neste espaço dias atrás comentando a eleição brasileira, também é verdade que no caso norte-americano os democratas tentaram transformá-lo no único tema que importava, até para camuflar o desempenho desastroso na economia. Em alguns casos, pode ter funcionado, pois as populações de três estados aprovaram o direito ao aborto em plebiscitos realizados também nesta terça-feira. Mesmo assim, ainda havia motivos suficientes para o eleitor norte-americano rejeitar o partido que ocupa a Casa Branca.

Ao menos parte da explicação repete a eleição presidencial de 2020: o eleitor moderado que rejeitou Donald Trump naquele ano teria feito o mesmo com alguns dos candidatos endossados por ele nestas midterms. O apoio de Trump lhes foi bastante útil nas primárias republicanas, mas não bastou no momento de conquistar o eleitorado geral. Foi o caso dos candidatos ao Senado Mehmet Oz (na Pensilvânia) e Blake Masters (no Arizona). Outra candidata endossada por Trump, Kari Lake, está perdendo a disputa pelo governo do Arizona, embora sua desvantagem esteja abaixo dos 2 pontos porcentuais e ainda haja chance de virada. Nenhum desses dois estados pode ser chamado de “azul”: em 2016, Trump venceu em ambos; quatro anos depois, a vitória foi de Biden, mas por margens mínimas, de 0,3 ponto porcentual no Arizona e 1,17 ponto porcentual na Pensilvânia.

As derrotas de trumpistas em disputas nas quais a vitória estava ao alcance – especialmente naquelas para o Senado, que já poderiam ter garantido a maioria aos republicanos caso o desfecho fosse outro – abrem uma janela de oportunidade para que estrelas republicanas em ascensão desafiem Trump, que ainda é o candidato natural do partido à Casa Branca em 2024. Se daqui a dois anos, nas primárias, o eleitor republicano tiver a mesma percepção que os democratas tiveram em 2020, buscando um candidato que encarne os valores do partido, mas que também seja palatável ao eleitor moderado, os olhares devem se voltar para Ron DeSantis, governador da Flórida que acaba de ser reeleito com 20 pontos de vantagem sobre seu adversário.

Diante da realidade americana de uma economia com problemas, os democratas ofereceram identitarismo e ideologia woke como resposta e saíram derrotados. Mas os republicanos têm de perceber que o eleitor também não abraçou com entusiasmo a resposta que eles ofereceram em muitos estados, a do retorno puro e simples ao trumpismo. O partido que tiver mais inteligência política e agilidade para perceber o recado do eleitor e fazer sua correção de rota sairá na frente na disputa pela presidência em 2024.


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