Fetiche da miséria

Por
Paulo Polzonoff Jr. – Gazeta do Povo


Se a utopia socialista se realizar no Brasil, em breve todos estaremos morando em taperas. Digo, bioconstruções.| Foto: Reprodução/ Twitter

Ao acordar na bioconstrução da Comuna Tapera, Lênin beija sua esposa Rosa Lux e sai pela casa a acordar os filhos Rex (um canino sem raça definida), Chezinho, de nove anos, e a pequena Dilma, que ainda usa fraldas de folhas de bananeira. Rosa Lux se põe a preparar o desjejum com café MST Extra-forte, pão de trigo orgânico com farinha de grilo, leite de aveia e suco de laranja do pomar comunitário. Antes de sentarem à mesa, todos se voltam para o retrato de Lula, o Libertador, diante do qual recitam trechos do Estatuto do PT e fazem uma saudação que eu não sou nem louco de descrever aqui.

Chezinho vai para a Escola Paulo Freire. Rex sai por aí a perseguir gatos, borboletas e uns poucos entregadores do iFood – resquícios da sociedade burguesa que a utopia ainda não conseguiu erradicar. Ainda. Lênin se senta para ler a Coletânia de Poezia Anaufabeta, na verdade uma reunião das mais belas impressões digitais de diversos autores comunistas, enquanto Rosa Lux se senta à mesa para escrever sua tese de pós-doutorado em Teologia Partidária, enigmaticamente intitulada “O Lula do Velho Testamento no Pravda de S. Paulo”.

É verão e lá fora o sol opressor já se mostra indiferente aos esforços políticos pelo fim das mudanças climáticas. Rosa Lux se abana com uma folha de bananeira enquanto troca a pequena Dilma. Lênin reflete sobre a condição do proletariado. Paira na bioconstrução o silêncio respeitoso de quem sabe que não tem lugar de fala para criticar os camaradas que, na tapera vizinha, escutam funk-social no último volume. Lênin se levanta, olha para o alto e vê o céu azulzinho-azulzinho. E lamenta que este será mais um dia sem banho, já que a água da cisterna foi toda usada para irrigar a horta agroecológica comunitária de cânhamo e o sistema de aquecimento por compostagem humana está quebrado.

De volta à poltrona de sisal feita pelas camaradas da cooperativa, ele liga o velho televisor de tubo que resgatou de um lixão naqueles conturbados dias que se seguiram à Revolução Socialista Primitivista, liderada pelo histórico camarada Guilherme Boulos. Na tela, mal se consegue distinguir a figura da apresentadora. Mas o som é perfeito e Lênin solta um gemidinho de prazer ao ouvir que aquele cronistinha fascista da República de Curitiba foi finalmente preso em mais uma etapa do Grande Expurgo Purificador.

Hora do almoço. Enquanto Chezinho se empanturra de carne vegana na escola, os pais, Rex e a pequenina Dilma se fartam de legumes e cereais que cozinham num fogão solar, seguindo as velhas e sábias receitas que a visionária companheira Bela Gil escreveu quando a Revolução ainda era só um sonho distante. “Se fartam”, logicamente, é modo de dizer. Afinal, todo mundo sabe que, se tem gente comendo de menos é porque tem gente comendo demais – pecado inadmissível na utopia.

Enquanto Lênin lava a louça, Rosa reafirma sua feminilidade dando ordens, às quais o marido obedece sem reclamar, penitenciando-se pelos séculos e séculos de opressão de seus ancestrais machistas. No chão de terra batido da bioconstrução, a pequena Dilma brinca com um barbeiro que lhe faz as vezes de bicho de estimação.

No meio da tarde, Chezinho chega em casa e, todo feliz, conta o que aprendeu na escola. “Sabia que a grama nem sempre é verde, papai?”, pergunta. Orgulhoso, o pai emenda um “o que você quer ser quando crescer, meu filho?” Ao que Chezinho não hesita em responder o óbvio: presidente do Brasil.

De repente, Rosa Lux larga as ferramentas com as quais tapava uns buracos no barro ecologicamente correto que revestia as paredes da bioconstrução. Ela se contorce em dor. “Tá na hora de pegar minha quota mensal de Tabatu’s no postinho do SUS. E viva o SUS!”, diz. Este é um código que todo homem que nasceu sob o auspício da utopia conhece. Lênin sai em disparada enquanto Chezinho decora a tabuada do 1 e a pequena Dilma aproveita que ninguém está olhando para pôr um barbeiro na boca.

A noite cai, mas não se machuca. Alguém bate à porta e, pensando que é o coletor do Partido que veio para receber a contribuição mensal, Lênin leva a mão ao bolso e separa cinco notas de dez mil lulas – metade do que ganhou de bolsa-família. Mas não. Quem vai entrando sem nem pedir licença são os companheiros da Polícia dos Bons Costumes Socialistas, que reviram a bioconstrução à procura de burguesices. Por manter a casa totalmente livre de quaisquer confortos capitalistas, Lênin recebe uma medalha em forma de estrela vermelha.

Assim que os policiais vão embora, Lênin, Rosa Lux e Che se sentam à mesa para mais um farto banquete vegano. Rosa oferece à pequena Dilma um gomo de tangerina, mas a menina rejeita. “Deve estar com o bucho cheio de besouros”, diz Chezinho. Todos riem. Por uma fresta na parede da bioconstrução, Rex entra trazendo na boca o que parece ser uma suculenta coxa de frango que algum onívoro ilegal assou com todo zelo e carinho do mundo. Com a boca cheia d´água, os humanos (menos a pequena Dilma) se entreolham. Pressentindo o perigo, Rex sai com o rabo entre as pernas, mas sem largar a coxa de frango.


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