Benefícios excessivos da Justiça a criminosos estimulam crimes cada vez mais bárbaros
Por
Gabriel Sestrem – Gazeta do Povo


Familiares se abraçam na entrada de creche em Blumenau, onde crianças foram mortas por criminoso em liberdade mesmo com vários antecedentes criminais| Foto: EFE/ Sávio James

O caso do homem de 25 anos que invadiu uma creche em Blumenau-SC no início de abril e assassinou quatro crianças com idade entre cinco e sete anos gerou grande comoção em todo o país. A tragédia, entretanto, poderia ter sido evitada se o criminoso tivesse sido mantido atrás das grades pelas transgressões anteriores que cometeu.

De 2016 para cá, o rapaz somou quatro passagens pela polícia, sendo uma delas tentativa de homicídio a facadas. Porte de drogas, briga em casa noturna, vandalismo e, por fim, o esfaqueamento de um cachorro completam seu histórico recente de ilícitos. Agora, ele responderá por quatro homicídios triplamente qualificados, além de cinco tentativas de assassinato de outras crianças.

A impunidade que manteve o criminoso nas ruas e permitiu a ocorrência do massacre é um problema crônico da Justiça brasileira e está relacionada principalmente ao sistema de progressão de regime prisional no Brasil e ao chamado “garantismo penal” – teoria levada a cabo por juízes que, ao buscar controlar excessivamente o poder de punir do Estado, criam um ambiente propício à reincidência criminal.

Na avaliação de especialistas em segurança pública, é da perpetuação de um sistema de impunidade em que criminosos veem chances remotas de penalizações mais rígidas que decorre o aumento da reincidência com crimes progressivamente mais graves. “Esse garantismo da Justiça não está só no Brasil, está no mundo todo. Mas aqui isso se tornou muito mais peçonhento, e o resultado é a impunidade generalizada. E a impunidade, como sabemos, é a mãe da reincidência”, explica o especialista em segurança pública Olavo Mendonça.

Episódios que ilustram os vícios crônicos do sistema de persecução criminal do país vêm de longa data. Um caso ganhou grandes proporções na década retrasada, quando um homem matou seis adolescentes enquanto cumpria pena em regime semiaberto, isto é, com direito a passar o dia fora da cadeia. Em 2005, o rapaz havia sido condenado a dez anos de prisão por ter abuso sexualmente de duas crianças. Mesmo com parecer contrário à soltura emitido por uma junta médica psiquiátrica, ele recebeu autorização para ir ao semiaberto por bom comportamento após quatro anos em regime fechado.

Outro caso de tolerância excessiva do Judiciário que gerou graves consequências foi a série de crimes cometidos por Lázaro Barbosa, que invadiu propriedades rurais em Goiás e no Distrito Federal entre abril e junho do ano passado.

Antes de progredir ao regime semiaberto, o criminoso colecionava delitos como homicídios e crimes sexuais. Somado a isso havia laudo médico que apontava problemas mentais e periculosidade e histórico de fuga e recaptura. Mesmo assim, a progressão de regime foi concedida após o rapaz receber atestado de bom comportamento. No ano passado, Lázaro dizimou uma família inteira, estuprou uma mulher, sequestrou outra, e matou outros moradores de propriedades rurais até ser morto por policiais após 20 dias de buscas em uma força-tarefa que contou com mais de 200 agentes de segurança.

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Com modelo frágil, progressão penal e saidões impactam diretamente nos índices criminais do país
O sistema de progressão de regime prisional brasileiro consta no artigo 112 da Lei de Execução Penal. É por meio dele que presos podem progredir para regimes menos rigorosos – do fechado para o semiaberto, e depois para o aberto – a partir do cumprimento de 16% da pena, ou seja, um sexto do total.

Mudanças nesta lei oriundas do chamado Pacote Anticrime, que entrou em vigor em janeiro de 2020, tornaram a progressão de regime um pouco mais rígida. Desde então, a progressão com um sexto da pena se aplica apenas a apenados primários, e desde que no crime não tenha envolvido violência ou grave ameaça.

O período mínimo de detenção para progredir aumenta caso o preso seja reincidente ou tenha cometido crimes violentos, por exemplo. Ainda assim, o tempo máximo que um preso pode ficar em regime fechado no Brasil é de 70% da pena, e esse teto só se aplica a casos bastante específicos: o apenado deve ser reincidente em crime hediondo ou equiparado, e seu delito deve ter resultado em morte. Na grande maioria dos casos, detidos por delitos violentos progridem com no máximo 40% do cumprimento da pena.

A Lei de Execução Penal abriga uma série de outros mecanismos que tornam mais fácil o retorno de criminosos às ruas sem que tenham cumprido adequadamente suas penas. São exemplos dessas medidas os indultos, as remissões por trabalho ou estudo e as saídas temporárias em datas comemorativas, em que um grande número de presos costuma não retornar aos presídios. No ano passado, 80% dos detentos ligados ao Comando Vermelho não retornaram às unidades prisionais após desfrutarem do benefício da saída temporária de Natal no Rio de Janeiro. Alguns deles eram chefes do crime organizado e classificados como presos de alta periculosidade.

Sérgio Habib, professor de Direito Penal que em 2013 integrou uma comissão de juristas no Congresso Nacional criada para debater propostas de reforma da Lei de Execução Penal, explica que a lei, que é de 1984, está desatualizada e não acompanhou a evolução dos fatos sociais do país.

“O objetivo de benefícios como a progressão e as saídas temporárias seria a recuperação e a ressocialização do preso. Mas a teoria é uma coisa, a prática é outra. E na prática isso não vem funcionando”, diz o jurista, destacando que a as taxas de criminalidade costumam subir em épocas de “saidões”, em que há a liberação dos presos. Para ele, é necessário maior rigor da Justiça ao decidir por conceder ou não os benefícios a fim de priorizar a segurança da sociedade.

“Se comparar nossa execução penal com a maioria dos estados norte-americanos, por exemplo, vemos que lá a legislação é significativamente mais dura. Já o Brasil adota uma linha de liberalização muito maior em relação ao condenado, o que abre espaço para a impunidade”, afirma.

Em 2022, 80% dos presos ligados ao Comando Vermelho, alguns deles chefes do crime organizado, não retornaram à prisão  após desfrutarem do “saidão” de Natal no RJ (Foto: Ascom Susipe)
Decisões da alta cúpula do Judiciário devolvem criminosos às ruas e reforçam impunidade
Nos últimos anos, diferentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) baseadas no garantismo penal facilitaram o retorno às ruas de criminosos, muitos deles presos por delitos violentos, sem terem cumprido adequadamente penas pelos delitos cometidos. Uma dessas decisões foi a derrubada, em 2006, da obrigatoriedade de cumprimento integral da pena em regime fechado a condenados por crimes hediondos, como estupro, latrocínio, tortura e terrorismo.

Em fevereiro daquele ano, o Supremo decidiu, por 6 votos a 5, que essa regra era inconstitucional e passou a conceder os benefícios da progressão para autores de transgressões graves. Os ministros derrubaram a regra anterior ao julgar pedido de Habeas Corpus (HC) de um homem condenado por atentado violento ao pudor contra três crianças. A Corte entendeu que a obrigatoriedade do regime fechado entraria em conflito com a garantia da individualização da pena, prevista no artigo 5º da Constituição Federal.

“O Supremo prestou um enorme desserviço à sociedade, permitindo que pessoas condenadas por crimes gravíssimos ficassem bem menos tempo na prisão. Antes um preso condenado por latrocínio, por exemplo, teria que ficar 30 anos em regime fechado. Talvez essa seja a maior besteira que o Supremo fez em toda a sua história”, afirma Ronaldo Lara Resende, promotor de justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul e professor de Direito Penal e Processo Penal.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) é outro importante órgão do Judiciário que, ao abraçar o garantismo penal, tem proferido decisões que contribuem para o aumento da impunidade e da reincidência criminal. Uma série de decisões recentes do Tribunal têm dificultado a ação policial e anulado provas de pessoas presas com grandes quantidades de drogas.

Recentemente, no dia 12 de abril, o órgão decidiu anular provas coletadas pela polícia e encerrar a investigação contra um dos principais líderes do PCC, conhecido como “André do Rap”, condenado a 25 anos de prisão. A justificativa do relator, que foi acompanhado por unanimidade pelos demais ministros, foi de que a ação policial teria sido ilegal porque os policiais fizeram busca e apreensão, colhendo provas que incriminaram o traficante, quando a ordem judicial autorizava apenas a prisão.

Além disso, o STJ também ordenou que a Polícia Civil de São Paulo devolvesse todos os bens do traficante, incluindo um helicóptero avaliado em mais de R$ 7 milhões. A aeronave, que estava sendo utilizada pelo governo paulista para o transporte de órgãos, havia carregado um coração para transplante em uma criança na semana anterior à devolução.

A decisão do STJ determinou que o helicóptero fosse devolvido antes mesmo da publicação do acórdão com a decisão dos ministros, o que impediu que o Ministério Púbico recorresse da ordem de devolução.

Vale recordar que, em 2020, o STF concedeu habeas corpus a André do Rap, devolvendo o traficante às ruas. Diante de uma forte onda de críticas à Corte, a decisão foi revogada. No entanto, a essa altura o criminoso já havia sido solto e não foi mais capturado.

“Quem está dando esse passo maior para desestimular as polícias e por outro lado estimular a traficância são os tribunais, que fazem esse tipo de coisa”, aponta Lara Resende. “Se um criminoso é pego com 60 quilos de drogas, mas tudo é anulado e ele fica livre para voltar a traficar, a Justiça está dizendo que ele pode continuar com aquela atividade. É um claro estímulo à atividade criminosa e à reincidência”, destaca o promotor.

70º lugar
País do Mensalão e do Petrolão, Brasil é um dos piores colocados em ranking da impunidade
Por
Gabriel de Arruda Castro – Gazeta do Povo

Brazilian business man hand and 100 US dollar bills on flag of Brazil background


A primeira edição do Atlas da Impunidade mostra o Brasil em 70º lugar entre 163 nações, num ranking em que o primeiro colocado é o país com mais impunidade| Foto: Bigstock

Um novo levantamento sobre a impunidade ao redor do mundo mostra o Brasil em uma situação pouco honrosa. A primeira edição do Atlas da Impunidade, produzido pela consultoria Eurasia, mostra o país está em 70º lugar entre 163 nações, num ranking em que o primeiro colocado é o país com mais impunidade. O desempenho brasileiro não só está abaixo da média global como é pior do que o da grande maioria dos países vizinhos.

O relatório define impunidade como “o abuso de poder possibilitado pela fraqueza da prestação de contas” (ou “accountability”, na versão original). Segundo os autores da publicação, a impunidade é uma medida abrangente e, ao mesmo tempo, objetiva que permite uma comparação direta do grau de efetividade das políticas públicas ao redor do mundo.

O atlas leva em conta 67 indicadores de 29 fontes diferentes para produzir a nota de cada país — em uma escala de 0 a 5. Os primeiros colocados na lista são Afeganistão (com 4,25 pontos), Síria, Iêmen, Myanmar e República Centro-Africana. Na outra ponta, estão Finlândia (último colocado, com índice de 0,29), Dinamarca, Suécia, Noruega e Alemanha.

Na divisão por continente, a Europa teve o melhor desempenho, seguida da Ásia, da América, da Oceania e da Europa.

Brasil atrás dos países vizinhos
Com 2,56 pontos no índice de impunidade, o Brasil está logo abaixo de Tailândia, Cazaquistão e do Kuwait, e logo acima de Belarus, da Argélia e de El Salvador no ranking geral. Dado o longo histórico de impunidade no Brasil, seria pouco realista imaginar que o país fosse aparecer perto da Suíça ou da Áustria no ranking. Mas, mesmo quando se considera apenas a realidade regional da América do Sul, o desempenho brasileiro é decepcionante.

O Atlas da Impunidade mostra que Uruguai (136º lugar), Argentina (120º), Chile (124º), Equador (106º), Peru (96º), Paraguai (93º) e Bolívia (75º) estão melhor do que o Brasil nesse quesito. Governada pela ditadura bolivariana há mais de duas décadas, a Venezuela tem, de longe, o pior resultado da região: o país aparece em 11º lugar. O estudo observa que, além da violência elevada, a falta de efetividade no combate à corrupção é um problema crônico das instituições brasileiras. “No campo socioeconômico, a corrupção sistemática e os crimes de colarinho branco são frequentes, ao passo que a desigualdade acentuada continua a prejudicar melhorias em outras áreas”, descreve o relatório, no trecho em que analisa a situação do Brasil.

A nota de cada é dividida em cinco categorias, e cada uma tem sua própria pontuação. O pior desempenho do Brasil é na categoria “conflito e violência” — o país é ocupa o 9º  lugar no ranking geral. A melhor nota do Brasil é a do quesito “degradação ambiental”, em que o Brasil é o 128º. Os outros critérios são a falta de prestação de contas do governo (em que o Brasil é o 93º), o abuso de direitos humanos (64º), e a exploração econômica (104º).

Termômetro da eficiência do Estado
De acordo com Fernanda Thompson, pesquisadora da Eurasia, os altos índices de criminalidade são o principal responsável pela colocação ruim do Brasil. “O Brasil tem um desempenho razoavelmente bom em exploração econômica e degradação ambiental. A classificação geral do Brasil sofre mais por causa da violência e, em parte, abuso de direitos humanos”, afirma. Ela acrescenta que, dentro dessa categoria, os principais problemas para o Brasil são as taxas de crimes violentos, taxa de homicídios, a violência policial e a falta de proteção adequada às mulheres.

Ainda segundo Fernanda, uma melhoria do Brasil no ranking não necessariamente depende de mudanças na legislação; um aumento na efetividade do governo já seria capaz de trazer resultados visíveis. “Nem todas as políticas públicas dependem de uma nova lei. Quando a gente fala da criminalidade, não é falta de legislação, mas a forma como a legislação está sendo aplicada”, explica.

De forma pouco surpreendente, o estudo também conclui que os países democráticos são os que têm menor índice de impunidade. “Acreditamos que a democracia liberal é o sistema de governo mais efetivo para proteger as liberdades civis, a liberdade de expressão, e os freios e contrapesos institucionais; ela também é a melhor forma de maximizar a resposta do governo aos desejos da maioria dos seus eleitores”, diz o texto.

Ainda assim, há exceções à regra: Singapura, um regime de natureza autoritária, está em 128º lugar, melhor do que Israel (117º) e Estados Unidos (118º).

O Atlas da Impunidade foi produzido pela consultoria Eurasia, uma das mais poderosas do mundo, em parceria com o Chicago Council on Global Affairs, um think tank não-partidário com sede nos Estados Unidos. O trabalho teve financiamento da Open Society Foundations, do bilionário George Soros, e da Fundação MacArthur. Uma nova edição do levantamento deve ser divulgada no ano que vem.

Em janeiro, um relatório da Transparência Internacional já havia apontado que o Brasil não fez progressos significativos no combate à corrupção na última década. O Brasil perdeu 25 posições no Índice de Percepção da Corrupção desde 2012 (esse caso, as posições mais altas ficam com os países menos corruptos). De 0 a 100, o Brasil obteve apenas 38 pontos, empatado com Argentina, Etiópia, Marrocos e Tanzânia

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