Leste europeu

Por
Leonardo Coutinho – Gazeta do Povo


O então presidente americano George H.W. Bush (à esquerda) em encontro no retiro rural de Camp David com o líder soviético Mikhail Gorbachev (à direita), em 2 de junho de 1990| Foto: Biblioteca Presidencial George H.W. Bush

“Nem uma polegada em direção ao leste da Europa.” Os defensores do presidente Vladimir Putin sempre tiram da cartola essa frase de 1990 para dizer que a invasão russa à Ucrânia em 2014 e a que está em curso desde fevereiro do ano passado são uma reação de Moscou à fome da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que jamais teria cumprido o acordo firmado entre os líderes ocidentais à época e o então líder da União Soviética, Mikhail Gorbachev.

Mas, de fato, os senhores que aparecem reunidos na imagem acima acordaram isso? Em 2014, quando Putin usou esse argumento estapafúrdio para invadir a Ucrânia pela primeira vez e tomar a região da Crimeia, Gorbachev entrou em cena para dizer que a queixa de Putin se baseava em um mito.

Gorbachev, que não anistia o que ele definiu como falhas dos Ocidente e principalmente dos Estados Unidos no pós-Guerra Fria, desmontou a farsa. Mas de que vale o testemunho de quem realizou as negociações se há uma história tão bem montada para validar sentimentos antiamericanos?

Nesta semana, o deputado petista Arlindo Chinaglia fez um discurso na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados que parece ter sido redigido em Moscou. Chinaglia começou com uma piada que diz que, ao ser interrogado por um juiz, um assaltante de bancos reconheceu o crime, mas justificou: “Eles me roubaram primeiro”, referindo-se ao banco como sendo o ladrão original.

O chiste serviu para Chinaglia ressuscitar a frase “nem uma polegada em direção ao leste da Europa” para abertamente dizer que Putin é a vítima da história. Que a quebra de um suposto pacto firmado quando da reunificação da Alemanha está na origem do mal; apesar dos recorrentes avisos de Putin de que reagiria, a OTAN e os Estados Unidos resolveram “pagar para ver”.

Chinaglia falava pela liderança de um bloco de partidos de esquerda que orbitam o PT. Chinaglia repetia o que a ex-presidente Dilma Rousseff já havia expressado em vários momentos desde o início da invasão. Chinaglia repetiu o que o presidente Lula, que se postula como o pacificador, também já verbalizou. Chinaglia papagaiava a propaganda de Putin, que, por sinal, não conquista apenas petistas e assemelhados. Ela também faz muito sucesso no polo oposto do espectro político brasileiro, que, por suposto, tem o formato de uma ferradura.

Putin não construiu sua propaganda do nada. Ele tem como suporte documentos desclassificados que tratam das negociações da época, que, sim, passaram pelo tema da não expansão da OTAN, mas que nunca chegou a ser um tema central. O próprio Gorbachev faz menção à despreocupação da URSS sobre o papel da OTAN, pois o mundo que estava se desenhando naquele momento apontava para uma integração de interesses em que a sua URSS estava se aproximando do Ocidente e não partindo para uma confrontação.

Este, por sinal, é um ponto central para entender o contexto em que as negociações e promessas se deram.

Era o crepúsculo da Guerra Fria e as negociações se davam com um parceiro que viria a deixar de existir no ano seguinte, em um ritmo que talvez nenhum dos atores envolvidos esperasse que fosse tão acelerado.

Nos seus últimos suspiros, a URSS de Gorbachev não buscava expansão. Na mesma linha do líder soviético, os americanos que testemunharam aqueles dias contam que a expectativa era a de que cada país tomasse o seu caminho. E com a vitória do Ocidente na Guerra Fria, era mais que natural a reorientação dos países que se desmembraram da URSS na busca de recursos para seu desenvolvimento e reintegração ao mundo livre.

Putin nunca aceitou isso. De uma maneira ou de outra, trabalhou para alimentar ressentimentos internos, passou a estender seus braços e exercer sua influência no máximo de antigas repúblicas soviéticas possível.

Chinaglia e os demais papagaios de Putin não falam de quando a Ucrânia teve o seu acesso barrado pela OTAN, em 2008. Eles também não fazem questão de entender que a invasão russa de 2014 foi uma reação extrema de Putin para punir uma Ucrânia que não aceitava estar sob o comando de um boneco de ventríloquo comandado por Moscou. Em 2014, Putin disse não e o então presidente ucraniano seguiu as ordens de não seguir em frente com o processo de ingresso na União Europeia, contrariando o desejo de um país inteiro.

O boneco de Putin caiu e ele então resolveu invadir a Crimeia para “salvar” uma parcela do país vizinho dos malvados fascistas de Kiev que queriam fazer parte da União Europeia.

A Ucrânia aprendeu, então, na prática, as lições do expansionismo de Putin. A sua reação à invasão atual é um ato de resistência que, se não tivesse ocorrido, o país já teria sido anexado. Dizer que os ucranianos são tão responsáveis pela guerra quanto os russos – ou, até mesmo, os únicos responsáveis – fala muito do caráter, dos valores morais ou, pelo menos, da sanidade de quem abraça esse tipo de argumento.


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