Retirada de não indígenas de área demarcada no Pará causa problemas sociais e afeta escolas
Por
Aline Rechmann – Gazeta do Povo


Após o início do processo de desintrusão da Terra Indígena Alto Rio Guamá, escolas foram desativadas. Algumas acabaram sendo saqueadas.| Foto: TV Piriá

A retirada de não indígenas de uma área no nordeste do Pará está causando uma série de problemas sociais nos municípios afetados pela ação do governo federal. A desintrusão na Terra Indígena Alto Rio Guamá (Tiarg) iniciou no começo do mês e tem prazo até o dia 31 de maio para ser concluída sem intervenção policial. A partir de 1° de junho, o Estado pode usar forças de segurança para retirar os não indígenas que continuarem morando na área.

Uma estimativa feita em 2010 aponta que pelo menos 1,6 mil pessoas devem ser afetadas pela ação. No entanto, este número pode ser maior, segundo as prefeituras dos municípios da região, que têm disponibilizado caminhões para fazer a mudança das famílias que precisam sair da Terra Indígena. Elas também lidam com as demandas de assistência social e de garantia de escolas para as crianças afetadas pela desintrusão (termo técnico usado para designar a retirada de não indígenas de áreas demarcadas). O governo do Pará também disponibilizou apoio aos não indígenas.

A ação de desintrusão envolve 18 entes do governo federal, entre eles a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a Força Nacional e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), mas não tem garantido aporte financeiro às prefeituras ou moradia para os não indígenas.

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Municípios foram obrigados a desmobilizar escolas em área indígena 
Como parte do processo de desintrusão, as prefeituras de Viseu e Garrafão do Norte foram obrigadas, pelo Ministério Público Federal (MPF), a desmobilizar escolas que atendiam quase 100 crianças e adolescentes não indígenas dentro da Terra Indígena Alto Rio Guamá. O MPF já se empenhava para desencorajar prefeituras da região a dar apoio aos invasores antes da ação de desintrusão.

Apesar da terra indígena não estar na área dos municípios de Viseu e Garrafão do Norte, as prefeituras atuavam nas vilas para garantir a educação e atendimentos básicos às famílias. “As escolas [do município de Garrafão do Norte] foram construídas por necessidade. No começo elas eram de madeira, sem condições de abrigar as crianças, e por isso foram reformadas há cerca de quatro anos. Independente das terras não pertencerem aos colonos, ali havia várias famílias vivendo em comunidade, precisavam de acesso à educação”, justifica a procuradora do município de Garrafão do Norte, Andressa Cristina Barbosa da Silva Lima.

As prefeituras de Viseu e Garrafão do Norte assinaram Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) junto ao MPF que previram o remanejamento dos estudantes para escolas do município fora da terra indígena e o oferecimento de transporte escolar. As matrículas foram garantidas aos estudantes em outras escolas da região, no entanto, devido às mudanças das famílias, a procuradora Andressa Cristina alerta que não há garantia de que as crianças estejam conseguindo acompanhar as aulas.

O município de Viseu teve que encerrar, no dia 31 de dezembro de 2022, as atividades da escola municipal de ensino fundamental Antônio Alexandre da Silva, localizada na Vila Pedão. A escola atendia 38 alunos com idades entre 3 e 14 anos. Já o município de Garrafão do Norte possuía quatro escolas dentro da área indígena que juntas atendiam 54 alunos, também com idades entre 3 e 14 anos.

Após o início do processo de desintrusão, as escolas foram esvaziadas e desativadas. Apenas a escola de Viseu teve a destinação do prédio indicada. De acordo com o procurador-geral do município, Agérico Vasconcelos, ela passará a servir como ponto de apoio para a Força Nacional que atua no processo de desintrusão. Algumas escolas, porém, foram saqueadas, tendo o telhado e as aberturas retiradas. Os autores dos saques não foram identificados.

Prefeituras fornecem apoio para famílias afetadas pela desintrusão 

A área da Terra Indígena Alto Rio Guamá é localizada no limite entre os estados do Pará e do Maranhão e abrange os municípios de Nova Esperança do Piriá, Paragominas e Santa Luzia do Pará. No entanto, a desintrusão mobiliza também as prefeituras de municípios vizinhos, como a de Garrafão do Norte e de Viseu.

As administrações municipais de Nova Esperança do Piriá, Viseu e Garrafão do Norte disponibilizaram caminhões para fazer as mudanças das famílias para locais fora da área indígena. Imagens registradas por veículos de comunicação local, como a TV Piriá, mostram caminhões com mudanças passando por áreas de difícil acesso, com estradas em condições precárias. Há ainda imagens de mudanças sendo realizadas com ajuda de pequenos barcos, já que há famílias vivendo em regiões isoladas.

A procuradora Andressa, de Garrafão do Norte, e o procurador de Viseu, Agérico Vasconcelos destacam que a maior parte das famílias que estão recebendo apoio das prefeituras para sair da TIARG tem como característica a prática da agricultura de subsistência. “São famílias que só tinham aquele pedaço de terra, que não tem para onde ir. Plantavam para sobreviver e, no máximo, tinham uma roça de mandioca para fazer farinha que era vendida no município”, destaca a procuradora de Garrafão do Norte.

Em relatório enviado ao MPF, a atual gestão municipal de Garrafão do Norte destacou que tem buscado parcerias com os governos estadual e federal para que sejam inseridos programas de habitação e opções para as famílias que residem nessas áreas.

Na última semana antes do fim da retirada pacífica dos não indígenas da área da Terra Indígena Alto Rio Guamá, o governo do Pará anunciou medidas para beneficiar as famílias. O anúncio foi feito pela vice-governadora Hana Ghassan, que esteve nos municípios de Nova Esperança do Piriá e Garrafão do Norte, acompanhada de secretários de Estado.

A assistência do governo do Pará será concretizada por meio do pagamento de um salário-mínimo às famílias em situação de vulnerabilidade social e recursos financeiros para compra de material de construção e pagamento de mão de obra a quem vai construir ou reformar – nesse caso, vale para aqueles que já tiverem lotes/terrenos em outros locais.

Processo de retirada de não-indígenas se desenrola desde a década de 90 
A terra indígena Alto Rio Guamá foi homologada em 1993, mas era reconhecida desde 1945. A área, com cerca de 280 mil hectares abriga indígenas das etnias Tembé, Timbira e Kaapor, distribuídos em 42 aldeias. Na época da homologação, havia não indígenas no território e o processo de retirada foi realizado no fim dos anos 1990 até começo dos anos 2000, com pagamento de indenização por construções feitas na terra e assentamento em projetos de reforma agrária.

Procuradores de municípios limítrofes à terra indígena afirmam, no entanto, que nem todos os não indígenas foram contatados na década de 90. “Pelo menos três comunidades do município de Viseu se formaram há mais de 80 anos naquela área. Depois, com as emancipações, parte da área passou a não fazer mais parte do nosso município. Alguns colonos realmente foram indenizados e reassentados e há os que acabaram voltando. Outros, no entanto, alegam que sequer foram contatados sobre o processo da terra indígena”, afirma o procurador-geral do município de Viseu, Agérico Vasconcelos.

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Governo federal assegura que há ocupantes de boa-fé na região 
O governo federal, em coletiva de imprensa sobre a desintrusão, pontuou que nem todos os ocupantes da área podem ser considerados invasores. Na coletiva, o procurador da República Felício Pontes Júnior disse que parte dos invasores é “de boa-fé”, já que são donos de propriedades regularizadas, há anos, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Na época da homologação, a autarquia ainda não fazia o processo de assentamento em conjunto com a então Fundação Nacional do Índio (Funai) e, portanto, ignorava princípios como a sobreposição de imóveis rurais ao território indígena. “Há pessoas com diferentes intenções lá dentro. E nós não executamos diretamente essa ordem, num primeiro momento, pois há pessoas que são ‘clientes do MPF’ que nós devemos defender também os direitos dos trabalhadores rurais sem terra, dos clientes da reforma agrária”, disse o procurador da República.

Parte das famílias já foram indenizadas e reassentadas a partir de ação do MPF em 2002 
Em 2002, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação de reintegração de posse pedindo a retirada de não indígenas do interior da Terra Indígena Alto Rio Guamá. Até 2007, foram efetivadas indenizações para 903 ocupações, que somaram R$ 3,1 milhões. Além disso, 522 famílias foram assentadas em projetos de reforma agrária para os quais o Incra destinou R$ 85 milhões em aquisição de terras. Dos assentados, 191 receberam créditos da ordem de R$ 1 milhão. A Justiça Federal deu ganho ao MPF em 2014.

Atualmente, o governo federal aponta que 2,5 mil indígenas estão vivendo na área. Em levantamento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) feito em 1990, três anos antes da homologação, havia pouco mais de 800 indígenas na área.

Alepa acompanhará a desintrusão 
O deputado estadual Rogério Barra (PL) propôs, no começo de maio, que a Assembleia Legislativa do Pará (Alepa) acompanhasse o processo de desintrusão por meio de uma comissão externa formada por deputados. Ele salientou que o foco do colegiado será atuar na análise e fiscalização para saber se todos os requisitos da desintrusão estão sendo preenchidos e se as famílias não indígenas estão recebendo o apoio necessário, a partir de dados atualizados e com a previsão dos impactos sociais que serão causados pela saída da área.

Há menos de uma semana do fim do prazo para a saída voluntária dos não indígenas da área demarcada, a comissão foi oficialmente autorizada a iniciar os trabalhos. Ela é composta por cinco deputados e terá prazo de 90 dias para funcionar. De acordo com a assessoria do deputado Rogério Barra, na próxima semana será realizada a primeira visita nas comunidades atingidas.

Enquanto o acompanhamento da Alepa não é efetivamente iniciado, a situação é abordada nos discursos dos parlamentares. O deputado estadual Toni Cunha (PSC) reconheceu o processo jurídico da situação, mas apelou para que as pessoas não sejam retiradas de forma açodada.

“Seja como for, não podemos admitir que as pessoas que estão lá há décadas, pessoas simples, camponeses, pessoas que praticam agricultura de subsistência, sem nenhuma ofensa à integridade ambiental daquela região, possam ser retiradas, como se fossem bichos, sem alternativas”. Ele também pediu outra área para praticarem novamente a agricultura de subsistência. “Para sustentar a si, suas famílias e até produzirem um pequeno comércio”, considerou.


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