Por
Luiz Philippe Orleans e Bragança


| Foto: EFE

Sim, e muito, só que não pelas razões que você imagina. O conselho mais importante da ONU é o Conselho de Segurança, do qual somente cinco países fazem parte de forma permanente: EUA, França, Inglaterra, China e – você adivinhou – Rússia.  Esse conselho delibera sobre temas de segurança internacional e pode impor suas decisões a todos os países-membros.  É o único conselho da ONU com tal poder e por isso é necessário voto unânime dos membros permanentes para ter efeito. Basta um voto contrário e a ONU não pode intervir militarmente ou impor sanções e embargos de todos os países membros contra qualquer outro. É na análise do voto de cada um deles que se pode determinar quem pode nos ajudar e quem pode nos prejudicar. Vamos a ela.  

O Conselho e seus membros – EUA, Inglaterra e França têm rivalidades econômicas e geopolíticas com o Brasil: nosso agronegócio rivaliza com o agronegócio dos EUA e Europa; nossa indústria, se reativada, pode incomodar; e caso o Brasil resolva ativar suas indústria e forças de defesa, EUA e Europa ficarão muito preocupados. Essas são algumas das razões pelas quais nossa indústria de defesa sofre embargos silenciosos de várias formas.  Por isso também pecamos em não ter uma política de defesa nacional efetiva para combater possíveis ataques e retaliações. Caso o Conselho delibere qualquer tema contra o Brasil no quesito de segurança, o voto desses três países já estará definido.  

A China tem interesses de controle econômico do Brasil, mas diferentemente dos EUA, França e Inglaterra, tem menos rivalidades conosco: não somos um desafio para ao poderio industrial chinês, ao contrário, dependemos de produtos industrializados de lá; nosso agro é complementar, e não rival, às necessidades de alimentação da China; e geopoliticamente não temos fronteira terrestre ou marítima com a China capaz de bloquear suas relações com outros países na região. Entretanto, na eventualidade de o Brasil se tornar soberano, com política própria, e surgir um voto no Conselho de Segurança desfavorável ao Brasil, a China será pragmática: se as resistências políticas de seus interesses econômicos no Brasil forem enfraquecidas, ela votará contra, junto com o primeiro grupo.

Nosso agronegócio rivaliza com o agronegócio dos EUA e Europa; nossa indústria, se reativada, pode incomodar

É aí que entra Rússia – A Rússia por si só não tem interesses nem rivalidades com o Brasil, e essa relação neutra é fundamental no que concerne ao Conselho de Segurança. Para nós, a Rússia é apenas mais um parceiro comercial e vice-versa.  Mas o Brasil pode ter um papel fundamental para a Rússia no sentido de quebrar a hegemonia que EUA e Europa exercem sobre a América Latina e África. Não que a Rússia queira assumir o papel de poder hegemônico nessas regiões, pois a China já ocupou esse espaço, mas para barganhar contra movimentações territoriais e embargos que EUA e Europa impõem sobre a Rússia há vários anos. A troca de apoio em áreas em que o Brasil é fraco, e deveria desenvolver, é um efetivo e a Rússia sabe disso. O Brasil ganha apoio necessário para dar um passo para se estabelecer e garantir sua soberania – lembrando que o país está dentro da esfera de hegemonia dos EUA e Europa e sofre de forma direta e indireta a influência desses blocos.    

Situação da Ucrânia – Considerando o exposto acima, imagine três cenários possíveis do conflito na Ucrânia: 1- Putin cai, abrindo espaço para mais um ditador, só que este mais alinhado à Europa; 2- Putin cai, e a China passa a ser quem define toda a política externa da Rússia; 3- Putin fica, mas perde poder político e se torna um títere, sucumbindo aos interesses dos chineses e do Ocidente (muito parecido com o que o Brasil é hoje). Quais desses cenários são bons para o Brasil?  Nenhum. Na verdade, todos esses cenários são péssimos para o Brasil.  

Essa última afirmação é difícil para muitos entenderem, muito menos aceitarem, mas se existe um país neutro com força para se contrapor aos países que tenham interesses ou rivalidades com o Brasil, esse país é a Rússia. Por isso não interessa ao Brasil ver a Rússia se esfacelar ou sucumbir a outros poderes hegemônicos.

Muitos condenam a Rússia por nunca ter sido uma democracia, mas sempre um tipo de autocracia: por parte dos imperadores russos, dos ditadores comunistas ou atualmente de Putin e seus oligarcas. Outros adoram a Rússia pelos motivos opostos: por adorarem modelos autocráticos, fundados numa versão torta da história russa que define como positiva a revolução comunista em 1917 ou por combaterem o “imperialismo” norte-americano. 

Mais recentemente, com a guerra da Ucrânia, surgiu uma torcida que condena a invasão e outra que defende os intentos russos.  Só que ambos os grupos tecem um futuro do que pode ou deve acontecer baseado nesse evento isolado, sob o prisma limitado do conflito daquela região. Nesse ponto, o posicionamento do Brasil do governo passado era adequado: condena a invasão da Ucrânia, mas não quer entrar no bloco de países que praticam retaliações contra a Rússia. Esse posicionamento significa que o Brasil não é contra o governo da Rússia, mas contra as decisões que esse governo tem tomado. E também significa que o Brasil não é contra a nação russa – ou Estado russo – pois as sanções afetam a sua população assim como a nossa.   

O Brasil pode ter um papel fundamental para a Rússia no sentido de quebrar a hegemonia que EUA e Europa exercem sobre a América Latina e África

No governo atual parece que esse pragmatismo saiu de cena. O alinhamento político e ideológico entre governos da mesma cepa autocrática é mais importante que os interesses de Estado. Ou seja, as perdas que podem decorrer ao Brasil e ao povo brasileiro são secundárias aos interesses políticos do atual governo de fazer bonito com os outros governos “amigos”. Grande erro.

Temos que examinar os eventos internacionais a partir dos interesses do Brasil e passar a ter uma visão mais pragmática e realista de como esses conflitos podem afetar nossas políticas e relacionamentos de forma direta e indireta.  Se olharmos todo relacionamento externo dessa forma mais acurada, o Brasil não deveria nunca se vincular a qualquer governo, mas buscaria sempre acordos que possam perdurar entre os Estados.

Por isso, como país, não devemos defender o que qualquer governo faz ou deixa de fazer; temos de pensar nos interesses do Brasil como Estado e nação e agir a partir disso. A opinião pública tem de ser sempre livre, mas as instituições que representam o Brasil de forma permanente têm de zelar pelo interesse nacional atemporal – mesmo que a opinião pública e o governo pensem diferente.  

É difícil desvincular o Estado de seu governo? Às vezes, sim, sobretudo quando se lida com autocracias. Mas no jogo complexo das relações exteriores essa distinção é fundamental. E é sob esse aspecto que nosso país perde se a Rússia deixar de ser um país soberano.

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