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Carlos Ramalhete – Gazeta do Povo
| Foto: Cole Stivers/Pixabay
O Código Penal, em seu artigo 246, tipifica o crime de “abandono intelectual”. Tratar-se-ia de “[d]eixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar”; a punição seria de “detenção, de quinze dias a um mês, ou multa”. Ironicamente, o artigo imediatamente anterior penaliza quem “[e]ntregar filho menor de 18 anos a pessoa em cuja companhia saiba ou deva saber que o menor fica moral ou materialmente em perigo”. A ironia está em que a jurisprudência considera que comete o tal abandono intelectual quem não entregue os filhos a escola reconhecida pelo MEC (Monstro Estuprador de Cérebros). Ora, dado o estado catastrófico do sistema pseudoescolar tupiniquim, quem comete verdadeiro abandono intelectual são os pais que matriculam os filhos num dos depósitos de crianças que hoje se fazem chamar escolas. E, mais ainda, tão calamitoso está o “ensino” brasileiro que seria perfeitamente concebível tipificar também pelo artigo 245 quem deixa uma criança indefesa e inocente nas garras do MEC (Máquina de Envilecimento e Corrupção).
A escola desempenha (ou melhor, desempenharia, se funcionasse) o papel de instruir as crianças in loco parentis, ou seja, subsidiariamente aos pais. Em outras palavras, a escola deveria ser o lugar onde se socorre emergencialmente os pais que não se veem capazes de instruir pessoalmente os filhos nem têm condições de contratar tutores particulares, exatamente como o hospital é onde se cuida de mazelas que não se pode tratar em casa. Mas eis que nossos delirantes políticos, numa inversão satânica da realidade, veem as escolas como o lugar em que a criança seria “libertada” dos pais por seu verdadeiro mestre, dono e senhor, o todo-poderoso Estado. Para os habitantes do mundo de fantasia dos carpetes vermelhos, instruir seria papel exclusivo da escola. Chega a espantar que não exijam que os bebês sejam levados a creches para que aprendam a falar com gagos ou mudos dotados de diplomas coloridos, selados e carimbados.
Mas ainda mais longe vai o desvario dos educratas. Para eles, de nada adiantaria ser instruído fora da escola, ainda que se aprenda muito mais e melhor. Afinal, o papel primordial de tal instituição, para os energúmenos do Planalto, é outro; a instrução é apenas a minhoca no anzol. Talvez seja uma vaga “socialização” (tremendamente artificial, aliás; fora da escola e do quartel, nunca se está cercado de gente com exatamente a mesma idade, vestindo exatamente a mesma roupa!), ou talvez se trate de um contraponto ou antídoto contra a moral familiar. Convenhamos: fora dos bairros de classe média alta das capitais, ela dificilmente seria tão politicamente correta quanto o que passa por currículo no que passa por escola.
A escola deveria ser o lugar onde se socorre emergencialmente os pais que não se veem capazes de instruir pessoalmente os filhos nem têm condições de contratar tutores particulares, exatamente como o hospital é onde se cuida de mazelas que não se pode tratar em casa
Na verdade, o que se quer e se faz ali é massacrar, massificar, matar na raiz o pensamento crítico e livre. A instrução propriamente dita é tão irrelevante que ninguém se preocupa com o fato de a escola brasileira mostrar-se radicalmente incapaz de instruir. Nada se vê de errado em que 50% dos universitários (ou seja, quem supostamente está no nível superior de instrução) sejam incapazes de ler e entender um texto simples.
Aprende-se, mesmo assim, um monte de coisas na escola. Todas péssimas. A sucessão de “matérias” desconjuntadas e isoladas, em prazos cronometrados, ensina a prestar atenção no que seu mestre mandar (literalmente), e só. Não interessa se uma aula é fascinante: ao tocar o sinal, sai um professor e entra outro. Esvazia-se o cérebro, interrompem-se os raciocínios, e começa-se tudo de novo com outro irrelevante conteúdo. Interesses intelectuais são assim coibidos e cortados pela raiz, mas a obediência ao Sistema, a capacidade de prestar atenção só no que as supostas autoridades mandam perceber, é incentivada. Nada mais importante para os donos do poder, claro, que um bom adestramento de seus súditos, habituando-os a interromper qualquer raciocínio ao toque duma sineta.
Aprende-se, igualmente, a odiar o diferente, num mecanismo de adestramento de fazer orgulho a Pavlov: põem-se 30 crianças exatamente da mesma idade, com exatamente a mesma roupa, numa sala em que todos são forçados a dirigir a atenção para o mesmo ponto (o picadeiro onde se alternam professores e matérias), sem poder conversar com o coleguinha ao lado por quase cinco horas. Na hora do recreio, breve interrupção do massacre da infância, é evidente que a criança vai querer falar com quem esteve ao seu lado, fantasiado de ele mesmo (mesma roupa, mesma idade…). Repetindo-se isto por 12 ou 13 anos, cria-se uma juventude que odeia quem ouve outro tipo de música, veste roupa de outra marca, o que for.
O que fazer com o MEC
Aprende-se, ainda, que nada do que é lecionado faz contato com a realidade. Tudo paira no vazio: fórmulas, signos, nomes, nada diz respeito à realidade, essa coisa suja e sórdida. Cada “matéria” é composta de uma série de castelos no ar, sem qualquer conexão lógica entre si e absolutamente desligados de aplicação prática. Tudo é feito de nomes e números, de sistemas vazios e autorreferentes, formando universos mentais estanques que só podem ser apreciados pelo engenho com que são compostos, mas que de nada servem nem poderiam servir na vida real. Este é um vasto mecanismo pelo qual se nega aos alunos o prazer, ou mesmo a consciência da possibilidade de estudo real. Afinal, o estudo consiste na sempre crescente formação de uma vasta e perfeitamente entrelaçada visão de mundo a partir de tantos diversos focos aplicados a um todo comum, em que a Biologia ajuda a entender a História, que mostra o uso da Química, que com a Física define a Geografia…
Aprende-se, ainda, que nada faz sentido naquilo que finge ser estudo. A ordem em que as partes dum conteúdo geral são apresentadas impede que as partes sejam compreendidas, com pré-requisitos aparecendo anos depois duma apresentação tão incompreensível quanto olvidável de algo que deles depende. Da mesma forma, chama-se “Literatura” a uma série de descrições, sem que jamais se chegue a ler um livro inteiro, que dirá mergulhar no espírito de cada estilo, no sem-número de universos em que se reflete tão belamente cada aspecto da natureza humana. Apoda-se “História” à grotesca dancinha do materialismo dialético, em que as paixões humanas são negadas e substituídas por interesses de classe, “Biologia” a um borbotão de termos aparentemente desprovidos de sentido e educação sexual à mecanicização e esterilização liminar duma promiscuidade presumida que toma o lugar do amor.
Finalmente, ainda que só por ser necessário parar em algum momento, aprende-se que o encarceramento num panóptico odiento é fato dado ou lei da natureza. De cada dia perde-se um quarto ao menos, visivelmente sem que disso venha qualquer vantagem, qualquer melhora. Aprende-se a aceitar péssimas condições, a suar no verão e tremer de frio no inverno, para nada. Aprende-se a depender de autorização superior até mesmo para as necessidades fisiológicas mais inadiáveis. Aprende-se a gastar horas e mais horas em atividades tão inúteis quanto desagradáveis, e a suspirar aliviado quando o carcereiro toca a pavloviana sineta que permite um mínimo de expressão da pujança e azáfama juvenis. Aprende-se a sofrer para acompanhar um desempenho médio teorético, que ou bem demanda enorme esforço ou bem é fonte de tédio, já que na realidade é raríssimo quem esteja no centro da média, e a divisão dos estudantes por idade, não por capacidade, garante que seja alto o desvio-padrão.
Não interessa se uma aula é fascinante: ao tocar o sinal, sai um professor e entra outro. Esvazia-se o cérebro, interrompem-se os raciocínios, e começa-se tudo de novo com outro irrelevante conteúdo
Já o componente supostamente intelectual do processo, ou seja, o conteúdo das matérias, é ao fim e ao cabo perfeitamente irrelevante. Tão irrelevante que ninguém sequer espera que o aluno saiba um mês depois o que regurgitou na última prova. Tão irrelevante que de nada adianta nem mesmo uma sobeja demonstração de domínio cabal do conteúdo, como a exibida estes dias pela bela sorocabana Elisa de Oliveira Flemer. Além da perfeição de sua redação, a sagaz donzela demonstrou raro domínio do conteúdo das matérias escolares ao conquistar o quinto lugar na disputa por vagas no concorridíssimo curso de Engenharia Civil da Escola Politécnica da USP. Contudo, por faltar-lhe o diploma escolar reconhecido pelo MEC (Mentira Extremamente Cabeluda), que tantos analfabetos ostentam sem que o saibam ler, não pôde entrar. Pior para a USP, poderíamos dizer; ela certamente conseguirá uma bolsa para uma universidade muito melhor no exterior.
Na verdade, todavia, pior é para o Brasil. Nosso sistema supostamente educacional é uma farsa, e farsa das mais macabras, como durante a pandemia os pais puderam ver nas telas em que os filhos são virtual e intelectualmente violentados. Botar um filho numa escola brasileira, repito, é abandono intelectual dos mais graves, a não ser que os pais gastem algumas outras horas do dia de que os filhos já perderam um quarto desfazendo o mal que lhes é feito na fábrica de salsichas intelectuais do MEC (Matadouro de Estudantes Competentes). Afinal, repito, abandonar uma criança indefesa nas garras de tal sistema é entregar o filho menor a pessoa inidônea, cujo nome é Legião. Legião de educratas, de pedabobos e demais parasitas dos neurônios de nossa juventude. É estuprar-lhe o intelecto, traumatizando-a de tal maneira que dificilmente conseguirá um dia realmente estudar. Afinal, quando se lhe falam de estudar, a vítima do sistema imagina o procedimento que repetiu ao longo de todo o tempo em que foi abusada pelo sistema: decorar irrelevâncias, vomitá-las na prova, esquecê-las e passar às seguintes.
Para piorar ainda mais a coisa, há um projeto patético e pernicioso na fila de votação dos famosos 300 picaretas do Planalto Central. Ele visa, basicamente, impedir que os filhos sejam instruídos fora do massificante moedor de miolos que passa por sistema educacional em Pindorama, atrelando-lhes a instrução ao sistema mesmo quando dada fora dele.
Aborrescência
Só para começar, o projeto de lei requer que ao menos um dos pais tenha um diploma de nível “superior”. Ora, bolas, no Brasil tal diploma não sinaliza sequer que a pessoa seja alfabetizada; trata-se, mais uma vez, de uma superstição idolátrica do País dos Bacharéis, em que o canudo é o que vale, não o conhecimento real que ele supostamente, muito supostamente, garantiria. Há uns poucos gênios com fundamental incompleto, e uma vasta multidão de asnos diplomados. Requer-se ainda que os pais apresentem certidões criminais estaduais e federais (oi?!), bizarríssima exigência que nunca foi demandada dos professores a quem são confiadas crianças aos magotes, sem que os pais sequer saibam-lhes o nome. Qual seria o sentido disso, além de engordar políticos com as taxas e quetais? Dificultar que os filhos sejam libertados dos horrores do MEC (Masmorra do Espírito Criativo), evidentemente, é o primeiro deles. Mas deve haver alguma pseudojustificativa que, confesso, escapa-me à compreensão. Afinal, se os pais passam, ao menos em tese, mais horas com o filho que a instituição escolar, caso a Babá Estado visasse “proteger” a criança que vitima, ela exigiria tais certidões para permitir a procriação, ou mesmo as relações sexuais (afinal, nenhum método de contracepção é infalível).
Para piorar ainda mais a situação, a vítima, digo, o estudante deve estar matriculado em uma fábrica de salsichas cuja chancela do MEC (Martírio do Erudito Consciencioso) já prova ser péssima, perniciosa e perversa. Mais ainda, os pais devem entregar relatórios bimestrais ao violador estatal de intelectos juvenis, mostrando os registros das atividades feitas pelo aluno, que, pobrezinho, ainda terá de fazer provas na escola. E, se for reprovado nelas dois anos sucessivos, será forçado a nela encarcerar-se. Ora, bolas, qualquer pessoa que já tenha tido a curiosidade básica de examinar qualquer material escolar hodierno sabe que a ordem em que os conteúdos são apresentados simplesmente não faz sentido. Para levar um estudante a dominá-los, é necessário adiantar uns estudos que deveriam ser preliminares a outros, postergar outros que dependem de uns, e por aí vai. Uma criança que estude em casa, com os pais ou tutores particulares, ou mesmo num grupo de estudos de vizinhos ou filhos de casais amigos (a melhor opção, aliás, desde que não se caia no erro de juntar os fedelhos por idade), pode aprender de verdade – ou seja, não apenas reter até o fim da prova para depois esquecer, mas encaixar o aprendido em sua visão de mundo, sabendo quando e como empregá-lo. Desde que, claro, os conteúdos lhe sejam apresentados numa sequência lógica.
Ao engessar a progressão didática ao festival de absurdidades do sistema do MEC (Ministério da Estupidez e Canalhice), ou bem o pobre aluno terá de estudar um conteúdo imensamente maior que o da escola e da prova, adiantando os pré-requisitos e coisa e tal, ou bem se repetirá em casa a palhaçada dos depósitos de crianças. A única vantagem, neste caso, seria que duas ou três horas de aula intensiva por semana amplamente bastariam para garantir resultados excelentes nas provas. A monstruosa desvantagem é que ele sairá do processo tão analfabeto quanto qualquer formado num “terceirão” de escola particular cara e tida por boa.
Uma criança que estude em casa, com os pais ou tutores particulares, ou mesmo num grupo de estudos de vizinhos ou filhos de casais amigos, pode aprender de verdade. Desde que, claro, os conteúdos lhe sejam apresentados numa sequência lógica
O pobre estudante ainda teria de cumprir ao menos os conteúdos previstos na Base Nacional Comum Curricular (que consegue ser mais delirante que um trans-humano terraplanista abduzido depois de devorar sozinho um bolo de maconha), aos quais se pode, claro, adicionar algo mais. Quanta generosidade da parte dos educratas, não é mesmo?, isso de permitir que os pais ensinem alguma coisa aos próprios filhos… E, finalmente, só para deixar bem claro que nossos filhos são propriedades do Estado, que generosamente até nos permite conviver com eles quando não lhe têm uso, será obrigatório comparecer a encontros presenciais semestrais com pedabobos e educratas, para que eles possam encher-nos a cara de perdigotos e os ouvidos de jargão sem sentido. Além disso, claro, ter-se-á de permitir que o Conselho Tutelar faça inspeções (!!!) na casa das famílias, esses lugares tão insalubres em que normalmente as crianças passam a maior parte do tempo em que não estão sendo zumbificadas pelo MEC (Mecanismo de Embutir Chouriços).
E, finalmente, o mais radiosa e solenemente patético: os pais devem “garantir a convivência em sociedade”. A mesma sociedade, diria eu, de que as pobres crianças submetidas aos moedores de miolos são afastadas coisa de 30 horas por semana, aprendendo a odiar o diferente, a cortar ao meio o raciocínio quando toca uma campainha pavloviana, e por aí vai.
O desafio da educação
O que temos, então, é apenas mais uma pustulenta demonstração do pior do Estado brasileiro. É um Estado que se acha dono de tudo e de todos, e percebe até mesmo os mais elementares direitos naturais (como o de educar os próprios filhos) como generosas concessões suas aos donos reais do direito. Um Estado que idolatra papeluchos, carimbos e selos, na perpétua ilusão de que o que vale é o papel, não a coisa real. Um Estado que não consegue fazer absolutamente nada direito, mas não apenas arvora-se no direito de tudo fazer como proíbe que as coisas sejam feitas por quem deve e sabe fazê-las (definição de “anarcotirania”, aliás). Um Estado que pendura toneladas de obrigações sem sentido nas costas dos pobres cidadãos, na fantasia de que gincanas burocráticas garantiriam algo que não a corrupção sistêmica. Um Estado que não está a serviço da sociedade, mas cultiva a delirante ilusão de que a sociedade seria ele mesmo. Um Estado em que as leis mais importantes (não matarás, não furtarás, não cometerás adultério…) de nada valem, mas as exigências administrativas de carimbos, selos e demais papeluchos patéticos são fervorosamente vindicadas. Um Estado em que armas e munições de guerra são contrabandeadas em enorme escala, facultando aos criminosos duelos de fuzis, bazucas e metralhadoras antiaéreas em zonas residenciais, mas livros e instrumentos científicos são retidos por meses na alfândega.
Um Estado, em suma, que é o maior avatar do caos na sociedade que parasiteia, que com seu “toque de Merdas” consegue apodrecer tudo que toca, e que orgulhosamente prefere o burocrata ao gênio, a feiura à beleza, e – como não poderia deixar de ser – a imbecilização em massa ao ensino individual.
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