Ásia

Por
Fábio Galão – Gazeta do Povo


| Foto: Pixabay

Numa entrevista em 2017 à prestigiada revista científica Science, o professor Scott Rozelle, do Instituto Freeman Spogli de Estudos Internacionais da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, fez um alerta: quase um terço da população da segunda maior economia do mundo está ficando para trás na formação escolar.

Naquela época, pesquisas realizadas pela equipe de Rozelle, coordenador do Programa de Ação de Educação Rural (Reap, na sigla em inglês), apontaram que mais da metade dos alunos da oitava série em áreas rurais pobres na China tinham QI abaixo de 90 e um terço ou mais das crianças nessas regiões não completava o ensino fundamental.

Acrescentando a essa conta os 15% ou mais de crianças moradoras de áreas urbanas chinesas que também apresentavam resultados ruins em avaliações de habilidades e aprendizado, Rozelle estimou à Science que cerca de 400 milhões de chineses corriam “o risco de se tornarem deficientes cognitivos”.

Uma proporção tão grande da população sem conseguir a formação escolar adequada seria um indicador ruim em qualquer país, mas é especialmente dramática para a China, que aposta na capacitação do seu povo para seguir crescendo a níveis superiores ao do resto do mundo e para aumentar sua classe média, com foco no crescimento da renda pessoal e do consumo.

“Este é o maior problema que a China está enfrentando e que ninguém nunca ouviu falar”, destacou Rozelle há cinco anos.

Tentando verificar se havia estratégias que poderiam reverter esse cenário preocupante, a equipe do pesquisador de Stanford monitorou nos últimos anos nove programas, abrangendo 11 intervenções, que contemplaram 47.480 alunos do ensino secundário (etapa que antecede o ensino médio no currículo escolar chinês) rural em 713 escolas chinesas.

Em maio, um relatório apontou o resultado dessas estratégias e ele foi desanimador: elas foram incapazes de gerar melhorias significativas de aprendizado na população estudantil atendida.

Esses programas e intervenções foram baseados em quatro eixos principais. O primeiro foi ajuda financeira, já que nas regiões rurais da China muitas famílias não conseguem pagar as mensalidades da educação básica, “que estão entre as mais altas do mundo em desenvolvimento”.

O segundo eixo foi incentivar a continuidade dos estudos por meio de aulas-extras em que os professores abordaram com os estudantes possibilidades de carreira, níveis salariais almejados e habilidades e formação necessárias para atingir esses objetivos, além de controle emocional e maneiras de lidar com a ansiedade – que é alta entre estudantes das áreas rurais da China.

Outro eixo foram treinamentos online suplementares e acompanhamento contínuo dos professores que atuam nessas regiões, além da introdução de um sistema de pagamentos em que os docentes receberam bônus salariais com base não no nível médio de desempenho de seus alunos, mas sim nos ganhos de desempenho de cada estudante em comparação com alunos em outras escolas que apresentavam nível semelhante quando o programa começou.

Por fim, o quarto eixo consistiu na entrega de óculos grátis para estudantes com problemas de visão.

Entretanto, quase cinco anos depois da entrevista de 2017, a equipe de Rozelle concluiu que nenhuma das 11 intervenções aplicadas foi capaz de melhorar o desempenho dos alunos monitorados no estudo.

“Uma interpretação disso é que o desempenho dos alunos no ensino secundário rural chinês não é suscetível a simples mudanças nas políticas”, apontou o relatório. “Depois de explorar algumas hipóteses, encontramos evidências sugestivas de que a natureza da política chinesa de matrícula no ensino médio e o currículo do ensino secundário são as melhores possibilidades para explicar a falta de ganhos de desempenho.”

O estudo de Stanford apontou que o sistema de educação imposto pela ditadura comunista, altamente centralizado, impede que estudantes com mais dificuldades ou aprendizado mais lento sejam atendidos satisfatoriamente – e acabam sendo deixados para trás.

“Devido à importância do exame de admissão ao ensino médio, o currículo no ensino secundário é altamente estruturado, difícil e acelerado. Também é regulamentado em um nível superior de administração (por exemplo, o condado, a prefeitura ou a província), de modo a ser justo para todos os alunos da jurisdição”, destacou o relatório da equipe de Rozelle.

“Como todos na jurisdição fazem o mesmo exame, todos precisam cobrir o mesmo material para o exame no mesmo período e com a mesma profundidade. Como resultado, o ritmo da aula muitas vezes escapa ao controle de professores e diretores – e não considera as diferenças de habilidade entre os alunos”, descreveram os pesquisadores americanos.

Nos últimos anos, o ditador Xi Jinping colocou a educação como um dos pilares para a transformação da China em uma “nação socialista moderna” até 2035 e em uma grande potência “próspera” e “forte” até 2049, ano do centenário da vitória comunista na Guerra Civil chinesa.

Entretanto, assim como o Partido Comunista defendeu no ano passado que a China é uma “democracia que funciona”, a diferença entre discurso e prática segue o padrão local de gigantismo e o alerta de que 400 milhões de chineses podem ser atropelados pela história segue válido.


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