História de editora3 • IstoÉ Dinheiro

Doutor em economia, Ricardo Meirelles de Faria tem sempre em mente uma frase do economista italiano Stefano Zamagni: “Os bons ganham no final”. Com isso ele fala das pessoas éticas. “É uma mensagem que deixo aos meus alunos, às minhas filhas. Você não usufruirá um bom futuro se a sociedade não estiver também a usufruir”, afirmou à DINHEIRO. “O comportamento ético é imprescindível.” Isso mais o pensamento crítico, o raciocínio crítico. Como ele recomenda, se pergunte: “Será que isso é assim mesmo?” Com esses valores ele analisa macroeconomia, perspectivas para 2024, independência do BC e o novo plano para a indústria. “Um importante legado que Lula pode deixar é não cometer os erros de governos anteriores em termos de recursos subsidiados mal-empregados.”

DINHEIRO — O ano de 2023 fechou melhor do que as projeções iniciais da maior parte do mercado. Por quê?

RICARDO MEIRELLES DE FARIA — Tivemos uma combinação de nível de atividade e inflação bastante positiva. Esta pela continuidade do arrocho monetário promovido pelo BC que, diga-se, foi bastante bem-sucedido para trazer a inflação de volta aos limites da banda estipulada (1,75% a 4,75%). Fechou em 4,62%. Com desemprego em 7,8% e PIB próximo de 2,7%. Mas há uma ressalva. Quase dois quintos do PIB passam pelo setor público — uma carga tributária na casa dos 34% do PIB, somando-se a um déficit nominal [que inclui despesas da dívida] quase sempre superior a 5% do PIB. Então, houve um efeito impulsionador causado pela política fiscal expansionista.

O que fez o déficit primário superar o prometido. O governo afirmou há um ano que trabalhava entre -0,5% e -1,0%, terminou -2,1%. Mesmo que se tire da conta o pagamento dos precatórios, fica em -1,3%. Como avalia essa performance?

O governo petista sempre tem uma visão do Estado como promotor da economia. Então esperava-se insegurança quanto à contenção dos gastos. Havia muita incerteza e muito ruído, principalmente em relação a como o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, iria se comportar em relação à política fiscal frente às pressões de um governo petista. Mas Haddad mostrou, e mostra, preocupação com isso.

“Seria de bom tom que o BNDES pudesse ouvir as diferentes vozes da sociedade para produzir um projeto industrial eficaz e eficiente” 

Ele reduziu a ansiedade?

E era uma ansiedade normal, uma vez que os mandatos petistas anteriores foram bastante diversos na condução da política econômica, com resultados também bastante distintos. E o Haddad se mostra um guardião. Enquanto for assim, eu fico tranquilo. Mais do que um número [do déficit], enquanto não jogar a toalha e seguir convencendo Lula de que certo controle fiscal é importante, eu não me preocuparia com esse resultado um pouco acima.

Mas vem mais gastança aí. Como você avalia o programa Nova Indústria Brasil?

Política industrial é um tema complexo e importante, por diversos motivos, em especial por conta da complexidade tecnológica que vivemos hoje e enfrentaremos nas próximas décadas. Então a pergunta é: ‘O que devemos priorizar como foco com nossos recursos, que são tão escassos?’ E nesse sentido vale o importantíssimo conceito econômico do custo de oportunidade: ‘O que a sociedade brasileira deixará de fazer com os bilionários recursos subsidiados do programa Nova Indústria Brasil?’

Essa é a questão central, se esses recursos irão para onde deveriam ir?

É quase irrelevante discutir se o subsídio é implícito ou explícito, se afeta o resultado primário ou resultado nominal do governo. O que importa é se há efetivamente um planejamento estratégico de médio e longo-prazo que mostre que esses recursos sejam aquilo de melhor que se pode fazer com nossa poupança. Até porque ela, de certa forma, nem nossa é, uma vez que no bottom line nacional ainda somos financiados pelo resto do mundo, temos recorrentemente saldos em transações correntes negativos. Estamos tomando recursos do do mundo para subsidiar nossa indústria.

Com resultados incertos…

Seremos mesmo capazes de produzir um navio moderno tão ou mais barato que a Coréia do Sul ou algum outro país na vanguarda na produção de navios? Quando? Qual o problema estratégico de se comprar um cargueiro coreano? Nossa história de planos econômicos e políticas industriais é um grande apanhado de vultuosos recursos desperdiçados por conta da ausência de um planejamento estratégico ou para beneficiar os amigos do rei.

“O governo e o Congresso têm de pensar na reforma da tributação sobre a renda com carinho para termos um futuro minimante equilibrado”

O que deve ser feito para quebrar esse círculo tão vicioso?

Um importante legado que o presidente Lula pode deixar, além daqueles seus legados já consolidados, é não cometer os erros de governos anteriores em termos de recursos subsidiados mal-empregados. E não digo somente dos erros do governo Dilma Rousseff, mas também aqueles do passado, o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, os PNDs [militares] da década de 70, a Lei da Reserva de Mercado da Informática da década de 80… Enfim, seria de bom tom que o presidente do BNDES, Aloízio Mercadante, reunisse seu corpo diretivo e gerencial e pudessem visitar, ouvir as diferentes vozes da sociedade: a academia, as consultorias, no sentido de produzir um programa eficaz e eficiente.

Mas o governo diz que países que se alavancaram tiveram os seus planos…

Comenta-se muito da China e sua política industrial. Vale lembrar que um investimento considerável do governo chinês nas décadas passadas foi financiar milhões de seus estudantes nas melhores universidades ao redor do mundo. Estaríamos nós colocando a carroça na frente dos bois?

Você está otimista para 2024?

O ano inicia ainda com a inflação acima da meta estipulada (3%), porém já entre as bandas. Podemos dizer que entramos em uma nova etapa do BC, que implica uma calibragem mais fina da política monetária para levar o patamar atual de 4,62% para a meta de 3%. Um grande desafio, certamente. A partir de agora a discussão será sobre quando ele deve encerrar o ciclo de cortes.

E qual sua projeção?

Creio que se mantenha o ritmo de cortes de 0,5 ponto percentual nas quatro primeiras reuniões do ano [até junho], chegando aos 9,75%. A partir de julho haveria uma redução para o patamar de 0,25 ponto percentual por duas, três ou até mesmo as quatro reuniões. Nesse cenário, a Selic ficaria entre 8,75% e 9,25% ao final de 2024 a depender da trajetória do IPCA. Nossa previsão é que ele fique na casa dos 3,7%.

Para isso, a independência e a autonomia do BC são imprescindíveis.

A busca pela manutenção do poder de compra da moeda não deve depender do ciclo político de um país. Temos um passado longo em que a política monetária funcionou como ferramenta de promoção política com resultados trágicos: décadas de inflação alta e períodos de hiperinflação que puniram as camadas mais pobres da sociedade. As boas práticas mostram que a autonomia dos bancos centrais é positiva e a ausência da autonomia é nefasta.

Com o BC fazendo seu papel de um lado, como avalia que será o PIB?

A grande pergunta há tempos que os economistas se fazem é qual é patamar do PIB potencial brasileiro. Fazendo um cálculo rápido: em uma proporção capital/trabalho de 40/60, força de trabalho crescendo a 0,8% ao ano, talvez exagerada, expectativa de crescimento de 1,0 ponto percentual de produtividade total dos fatores, também bastante otimista, e uma relação investimento sobre o PIB de 18%, acima dos 16,7% da média dos três primeiros trimestres de 2023, chegaríamos a um PIB potencial de 2,0%. Ou seja, 2% é um crescimento otimista para o Brasil de hoje. Nossa estimativa é de que fique em torno de 1,5%.

E no cenário externo, quais os riscos?

O conflito no Oriente Médio tem se mostrado cada vez mais preocupante, gerando implicações fortes sobre o preço do petróleo com o Brent passando dos US$ 80 nesta semana [última de janeiro]. E o segundo grande problema é a eleição americana, que vai gerar bastante volatilidade. Vai haver impactos enormes, na eventual eleição de Donald Trump, sobre a guerra da Ucrânia, relação com Europa, China.

O que internamente o Brasil pode fazer?

Um lado positivo é a balança comercial melhorando. Isso alivia e reduz o nosso déficit de transações correntes. E se a gente mostra certa preocupação do ponto de vista de solidez fiscal, com uma política monetária autônoma e eficiente, tudo indica que podemos receber investimentos.

Mesmo assim, crescimento abaixo de 2%.

É importante a gente dividir um pouco a questão cultural brasileira, esse feijão com arroz: se destaca um pouco, desce um pouco. Embora a gente diga que o ano de 2023 tenha sido bom, os indicadores sociais são muito ruins. Educação precária, violência. O que a gente tem hoje em nível de homicídios, por exemplo, é de uma guerra civil velada [o Brasil lidera o ranking de assassinatos: 47.722 pessoas em 2021]. A gente não pode se contentar com PIB, com alguns indicadores econômicos. Mas aí entra em cena a elite pública. O total de despesas da União bate em R$ 2,2 trilhões — sem pagamento de juros. Nosso Congresso come 0,12% do PIB (o dos EUA, menos de 0,02%). O Judiciário custa ainda mais: 0,70% do PIB (o dos EUA, 0,14%).

Não há o menor sinal de que essa preocupação venha dali, concorda?

Nesse sentido é imperativo que o governo foque na eficiência desse gasto público. Elimine os subsídios desnecessários e benefícios indecentes a diversos grupos de interesse que orbitam ao redor de Brasília e nos centros de poder regionais. O tema mais espinhoso e decisivo é o governo continuar sinalizando que o controle fiscal é um ponto importante a ser perseguido. Também deveríamos focar e dar ênfase ao núcleo de economistas que auxiliam Simone Tebet a analisar qualitativamente o gasto público e focar em uma Reforma Administrativa eficaz.

E se ela não ocorrer?

Desde Cabral a gente é um país extremamente desigual e injusto. Esse é o grande enfrentamento que nós precisamos ter para o médio e longo prazo. Temos de direcionar as nossas forças agora. Significa reduzir subsídios e benesses injustas que uma parte da sociedade usufrui e são completamente imorais. É urgente endereçar uma solução para reduzir a pobreza em todos os sentidos, fazer com que a nossa população mais carente tenha educação que a faça entrar num mercado de trabalho decente do século 21.

Um exemplo: nossa tributação não é progressiva, é regressiva. Ou seja, o filtro tributário é concentrador e não distribuidor de renda. E aqui há uma chance. Existe [em pauta] uma mínima reforma da tributação sobre a renda. O governo e o Congresso têm de pensar nela com carinho para termos um futuro minimamente equilibrado. A gente não pode perder tempo.

O post “Gastamos mal e Lula deixará um grande legado se não desperdiçar recursos”, diz Ricardo Meirelles de Faria apareceu primeiro em ISTOÉ DINHEIRO.

Loading

By valeon